05/06/2007

EDITORIAL

A re-volta da política


Contra todos os prognósticos, a ocupação da USP resistiu à má-fé do
tucanato, ao imobilismo de uma esquerda engessada no aparelho federal e de
um PT em rota de colisão suicida contra a própria história. Bem-vinda re-
volta da ação política.

Carta Maior

O movimento estudantil brasileiro tem uma história de luta e resistência, em
defesa da democracia e de um projeto de desenvolvimento para o Brasil, que
combine crescimento, combate à pobreza e justiça social. Foram os estudantes
que, na época da ditadura militar, assumiram a linha de frente contra um
regime autoritário, implantado no país a ferro e fogo, com o apoio das
elites que conspiraram para derrubar o governo constitucional de João
Goulart. Foram os estudantes que doaram sua energia, sua paixão e, muitas
vezes, sua vida, para iniciar um movimento de resistência que durou vários
anos e que culminou com a redemocratização do país. Foram os estudantes que
criaram, em 1961, através da União Nacional de Estudantes (UNE), o Centro
Popular de Cultura, reunindo artistas e intelectuais de diferentes áreas com
o objetivo de construir uma cultura nacional, popular e democrática. A
história de mobilizações dos estudantes brasileiros é, portanto, uma
história de luta em defesa da justiça, da liberdade, da democracia e da
melhoria de vida de um povo sofrido.

Agora, em 2007, foi preciso a teimosia de um grupo de estudantes que ocupou
e sentou praça na reitoria da principal universidade brasileira, a USP, para
que a opinião pública tivesse conhecimento do bolor germinado no ambiente
acadêmico, após 12 anos de hegemonia tucana em São Paulo. Enquanto pode, o
governador José Serra (PSDB), que fez campanha eleitoral enaltecendo o
longínquo passado de ex-presidente da UNE, apascentou a letargia na qual
florescem os letais cogumelos de irrelevância da ação política no país.
Primeiro, tentou desqualificar as acusações contra decretos que ferem a
autonomia constitucional das instituições de ensino superior do Estado,
classificando-as como “uma ação política” (sic) de grupos privilegiados, que
estudam de graça, lotam os pátios do campus com carrões último tipo e - só
faltou dizer - saem de lá às sextas-feiras para altas baladas em clubes
privês.

O decreto, portanto, era “republicano”, encenou em seguida, para repetir o
cacoete elitista sempre que se trata de colocar o interesse da maioria sob
intervenção pressurosa da plutocracia. A neblina retórica mal disfarça o
deslocamento de um político que flutua no cargo enquanto espera pelas
eleições de 2010. Submetido a um orçamento quase todo ele carimbado e sob a
canga de uma Lei de Responsabilidade Fiscal criada pelos seus pares, Serra
clama por oxigênio orçamentário para saciar o apetite de um projeto
eleitoral. O cargo administrativo, paradoxalmente, sufoca seu projeto de
chegar ao poder federal. Está desconfortável no papel que inventou para si
mesmo. Os R$ 5,5 bilhões de reais dos orçamentos da USP, Unesp e Unicamp -
algo como 9% da arrecadação do ICMS - surgiram à sua frente como o cofre ao
alcance das mãos. E não adiantou intelectuais de esquerda, seus amigos,
professores universitários, advertirem que o tiro sairia pela culatra. O
apetite eleitoral cegou a visão administrativa e até mesmo o tirocínio
político.

Contra todos os prognósticos, porém, a ocupação resistiu à má-fé do
tucanato, ao imobilismo de uma esquerda engessada no aparelho federal e de
um PT em rota de colisão suicida contra a própria história. E porque
resistiu, ficamos sabendo então, finalmente, o que há por trás da imagem
idílica que os tucanos de bico longo e idéias curtas vendem sobre a USP.

Há uma lista de mais de 800 alunos na fila de espera por uma vaga na
residência universitária do campus da “elite” do país. Há um grupo que se
cansou de esperar e mora num cortiço debaixo da arquibancada do centro
esportivo universitário. Há meninas que tomam banho no chuveiro do estádio
espiadas por seguranças, porque os vidros estão quebrados e ninguém nunca
vai consertar. Ficamos sabendo que a luz das arquibancadas se apaga às 20
horas e que é preciso arrastar mesas e cadeiras para debaixo de um holofote
externo para poder estudar. Que há classes com mais de 50 e até 60 alunos na
Geografia e na História; que o concreto do prédio da FFLCH está caindo aos
pedaços há anos e não há verbas para reforma, assim como não há e não haverá
verbas para contratar mais professores no futuro, e que a situação vai
piorar, segundo o prognóstico do diretor da faculdade, o sociólogo Gabriel
Cohn.

Ficamos sabendo que o custo mensal por aluno na principal universidade
brasileira é da ordem de R$ 2.300, contra R$ 26 mil em Harvard; e que os R$
2.300 incluem não apenas a “mordomia” da turma que se abriga em quartos de
tripla ocupação, mas o salário dos professores; a aposentadoria dos
funcionários idosos; parte da pesquisa; a manutenção de laboratórios e a
produção acadêmica que aumentou 51% nos últimos anos, enquanto o número de
alunos cresceu 70% e o de professores não chegou a um terço disso. Ficamos
sabendo, enfim, que a frustração profissional dos formandos, a exemplo do
que ocorre com a juventude mundial mastigada nas engrenagens da
deslocalização fabril, segue uma linha de continuidade incubada no descuido,
no desalento, na despolitização e na opacidade intelectual que lateja na
rotina desbotada desse conto de fadas da universidade de elite, ainda
vendido pela mídia quatrocentona.

A elite paulista na verdade vendeu a fábrica da família e os novos big boss
querem uma universidade que sirva para adestrar quadros just-in-time. E
pesquisas com a mesma agilidade mercantil. “Operacionais”, diria o
governador no decreto obsequioso aos mercados, mas repelido pelos
estudantes, professores e funcionários, decretos que ele já atenuou duas
vezes, sem convencer. Não convence porque os estudantes, os mestres e os
funcionários enxergam o reboque caindo pelas paredes, os salários
despencando nos holerites e esperanças profissionais escorregando pelos
mercados desregulados. E porque disseram que não cola, de repente uma
palavra insípida, branca e lisa como um azulejo de banheiro voltou a
cintilar no verbete gasto de um país, cujo léxico e nexo continua na mira da
ortodoxia conservadora e pelo cinismo supra-partidário.

“Autonomia”, dizem as faixas e os ocupantes de reitorias pelo Estado
afora. “A autonomia está garantida”, respondem, nervosos, assessores do
governador, enquanto a massa acossa as vizinhanças do palácio. Que país,
afinal, ou melhor, que projeto de sociedade finalmente pulsa outra vez sob
essa palavra-ônibus que os robóticos editorialistas conservadores querem
circunscrever numa cabeça-de-alfinete jurídico-burocrática ou acomodar num
patinete infantil? Eis a pergunta que a partir de agora estudantes,
professores e funcionários terão que encarar. Depois de ressuscitarem as
ruas e os campi, chegou a hora de decifrar esse enigma que sacode as
maçanetas e força os trincos do ambiente embolorado de pragmatismo e da
preguiça intelectual no qual florescem os cogumelos da irrelevância
partidária brasileira. Bem-vinda re-volta da ação política, que mais uma vez
na história brasileira renasceu das universidades, das lutas de estudantes,
professores e funcionários – e que ela venha para invadir outros ambientes,
crescer e multiplicar-se.

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Enquanto ocorre a ocupação da Reitoria da USP, no contexto acima,
aqui na UFPR em Curitiba, hoje houve a ocupação da Reitoria por estudantes
mobilizados pelo DCE, que por sua vez, atendeu ao chamamento das ocupações
gerais feito pela UNE, conforme amplamente divulgado pela imprensa semana
passada, após a audiencia do seu Presidente Gustavo Peta, com o Presidente
Lula.
Segundo a oposição estudantil, a ocupação é uma farsa e ocorreu com o
apoio do Reitor, que, aliás, se encontra em viagem na Polônia ....