Entrevista - O ESTADO DE SÃO PAULO
(28/05/2007)
Roberto Romano: professor titular de Filosofia da
Unicamp
Para filósofo, está na hora de o governo reunir
representantes dos 3 poderes e chamar universidades para discutir a
autonomia
Simone Iwasso
Um grande palco, com diversas coisas acontecendo ao
mesmo tempo, mas com os holofotes apontando excessivamente para um
pequeno trecho de cada vez. Sem enxergar o contexto, o restante que pode
explicar e ser contrapeso ao que está sendo ressaltado fica de fora.
Assim, todos estão dizendo a verdade e todos estão mentindo, já que cada
recorte só fica verdadeiro se visto em ligação com o todo. A alegoria,
retirada de um livro do alemão Erich Auerbach, é usada pelo filósofo
Roberto Romano, professor titular de Filosofia da Unicamp, para analisar
o impasse que se instaurou na USP desde o início do ano com o debate
sobre a autonomia, motivado por decretos do governador José Serra
(PSDB). Para entender a situação, o professor retoma a Constituição de
88, que garantiu a autonomia universitária, e a falta de regulamentação
que se seguiu após sua promulgação - responsabilidade, segundo ele, dos
sucessivos governos, ministros, parlamentares, reitores, professores e
movimentos estudantis.
O senhor considera que a autonomia universitária
está em risco?
É evidente que há risco.Os decretos em cascata do
governo definem padrões de administração. Dissolver a estrutura do
Cruesp (Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas) e
colocar o secretário de Ensino Superior como presidente quando havia um
mandato em vigência foi uma espécie de demissão sem cerimônia da
reitora. Depois veio uma série de decretos que seriam aparentemente uma
prestação de contas, mas que também são mudanças estruturais de alocação
de recursos. Universidade tem departamentos, setores, conselhos. As
pesquisas são feitas não de maneira sincrônica, mas cada uma com um
tempo e necessidade; uma demanda mais material, outra menos. Uma coisa é
prestar contas, outra é passar sob a égide do governador.
O governo devolveu a presidência do Cruesp aos reitores e afirmou que os
decretos são para todos os setores do funcionalismo, mas não atingem as
universidades.
Tudo isso vêm na forma de procedimento habitual do
Executivo nacional - federal, estadual ou municipal. Primeiro ele faz o
que deseja e depois pede desculpas. Não consulta, não fala, não discute.
Reitores foram tomados de surpresa, apenas comunicados. Pinotti foi
reitor da Unicamp, Serra foi professor. Mas, quando agem como o
Executivo, deixam a prudência de lado e mesmo idéias boas são totalmente
mal recebidas porque jogadas de surpresa. Nesse caso, existe um
propósito teoricamente bom que é a prestação de contas, mas não houve
negociação.
É possível dizer que alguém está com mais razão nesse debate?
Vou usar uma imagem do Erich Auerbach, no livro
Mimeses, quando ele fala da técnica das luzes, do efeito holofote.Você
tem um grande palco, onde diversas coisas acontecem sincronicamente. Na
hora da luta, você ilumina somente um ponto do palco. Aquilo que você
ilumina é verdadeiro, mas, ao focar a luz em só um ponto, fica falso. O
que estamos vendo é que estudantes colocam o holofote num pedaço do
palco e o governo coloca em outro. Os dois estão dizendo a verdade e os
dois estão mentindo. É preciso tempo e paciência para iluminar todo o
palco.
Qual é então a situação da autonomia?
A autonomia universitária não foi regulamentada no
plano federal até hoje. É um mandamento sem nenhum corpo, uma idéia sem
ossatura. Ela foi colocada na Constituição pelo Florestan Fernandes, que
estava preocupado com as instituições de pesquisa. E segue o princípio
da Constituição, que é a autonomia dos Estados, dos municípios, dos
poderes. Veja o Ministério Público, quanta coisa se fez a partir da
autonomia. Ela andou lentamente, mas andou - tanto que os últimos
retoques nesse ponto foram dados no ano passado. No caso das
universidades, nada foi feito. É necessária uma regulamentação que
estabeleça normas, e a falta disso é culpa dos sucessivos governos
federais, dos ministros da Educação, dos parlamentares e dos reitores
das universidades federais, porque não interessou, nesses anos todos,
discutir seriamente a autonomia. Eles preferiram manter a garantia de
liberar recursos batendo na porta, usando influência junto a ministros.
O Estado de São Paulo, em 1989, fez um decreto
sobre a autonomia. Não foi um começo?
Qualquer decreto para as estaduais se empalidece se
não é baseado na autonomia das federais. Ninguém levou a sério a
regulamentação e a implementação da autonomia universitária. Ficou um
princípio morto, que não traz nenhum benefício para ninguém. O decreto
de São Paulo, de 1989, do então governador Orestes Quércia, não traz
garantias, até porque pode ser revogado a qualquer momento. Na época do
Fleury, o governo repassava menos verba para as estaduais e os reitores
não reclamavam porque sabiam que dependiam de um decreto que podia ser
revogado. Na Constituição do Estado, a Fapesp tem garantida sua
autonomia de recursos, um processo encaminhado pelo Montoro. Para as
universidades, não há isso. E aí entra a culpa dos sucessivos governos,
reitores, professores e movimento estudantil. Não é possível dizer que
os docentes são inocentes, que essa questão caiu do céu agora. Basta um
pouco de boa-fé e conhecimento jurídico para saber.
Ações judiciais questionando os decretos seriam alternativa?
Não adianta discutir o princípio da autonomia porque
ele já está na Constituição. Mas também ninguém pode cobrar do Estado o
respeito absoluto a isso, porque não há nada resolvido. Na hora da
briga, sempre aparece alguém querendo ter toda a razão. É a imagem dos
holofotes. Não há nenhum entendimento no lado docente, nem no dos
estudantes, nem nas cúpulas das universidades. Também não há
entendimento na Assembléia e no governo. Quanto a essa questão, a única
esperança seria a Constituição federal, mas ainda não há essa
regulamentação. Se você entra na Justiça, como vai agir uma casa como o
Supremo Tribunal Federal (STF)? Ele terá de dizer que os decretos operam
nessa franja, nesse vácuo. Repito, a falta de responsabilidade sobre a
situação é de todo mundo. Outro exemplo: até hoje as estaduais não
encaminharam uma solução para a aposentadoria dos professores, não se
criou um fundo de pensão. Isso é uma maneira de ficar na mão do governo.
A academia estaria disposta a retomar essa
discussão?
As pessoas falam do governo, dos estudantes, dos
professores como se fosse um monobloco. E isso não é verdadeiro. Você
tem o secretário com sua opinião, o governador que ainda não manifestou
claramente o que pensa sobre a essência da questão e a base parlamentar.
Do lado docente e estudantil, também não é monobloco. Temos desde esses
grupos que agem como fascistas para impor sua opinião até pessoas
sérias, que não concordam com essa invasão da reitoria, não concordam
com essa maneira de protestar, mas que estão realmente preocupadas com a
autonomia. É preciso colocar os holofotes em todos os cantos do palco.
Esse momento muito heterogêneo de discussão seria
uma oportunidade para propor uma debate sobre a regulamentação?
Está na hora de o governo reunir representantes dos
três poderes e chamar universidades, especialistas em ciência e
tecnologia para elaborar um plano com base em estudos jurídicos. Se vão
abrir um clube, fazem estudos jurídicos, discutem com a sociedade.
Agora, para uma coisa tão séria quanto a autonomia das universidades, ou
se discute em praça pública ou fechado em gabinetes.
Existe também o fato de outras reivindicações
entrarem no protesto de alunos, professores e funcionários.
Um elemento que me deixa muito irritado é o
oportunismo de alguns setores. Autonomia é uma coisa gravíssima,
política, social, científica e tecnológica. Não dá para misturar com 3%
de aumento. É oportunismo atroz. Parece que está se comparando autonomia
com aporte de R$ 200 nos salários. Se a gente diz que o governo está
errado, você é elogiado. Se fala que os reitores estão errados, aí é
vaiado.
A impressão que passa é a de que a universidade é
muito competente e eficiente na hora de estudar as situações da
sociedade, mas, quando se trata de temas internos, há uma grande
dificuldade.
Eu disse uma coisa semelhante em uma reunião do
conselho de graduação da Unicamp. Está na hora de a universidade começar
a tratar seus assuntos internos com o mesmo rigor e exigência que
dispensa para a física, a lógica, a química, a matemática, as ciências
de maneira geral. Ela trata de suas questões, até hoje, empiricamente.
Todo mundo grita, ninguém tem razão.
Quem é:
Roberto Romano
Paranaense, 61 anos, leciona História da Filosofia
Moderna na graduação do Departamento de Filosofia do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e Ética e Filosofia na pós do
mesmo instituto
Autor de Conservadorismo Romântico (Ed. Unesp) e
Caldeirão de Medéia (Ed. Perspectiva)
Foi vice-diretor da Faculdade de Educação da
Unicamp