Segunda-feira, 23 junho de 2008

NACIONAL
Memórias da tomada da USP, 40 anos depois

Estudantes da época lançam hoje ‘Arcadas no Tempo da Ditadura’

Fausto Macedo, SÃO PAULO

Quarenta anos faz hoje da ocupação das Arcadas do Largo São Francisco por uma ruidosa turma de rapazes de cabelos longos e meninas de minissaia, estudantes da Faculdade de Direito da USP.

Era 23 de junho de 1968, um domingo gelado e uma garoa fina caía, quando os rebeldes, uns 80 alunos, de boas famílias, algumas de tradição e alta linhagem, decidiram em assembléia no Centro Acadêmico XI de Agosto tomar o edifício solene do centro de São Paulo.

Seu propósito era desafiar os militares no poder e exigir a reforma universitária - eles repudiavam a gravata e outras etiquetas da cátedra. A campanha arrastou-se por 25 dias e nesse tempo eles se ocuparam de comícios e declarações públicas contra o regime dos generais e o anacronismo do ensino.

Até que a polícia política e a tropa de choque os desalojaram em obediência à severa ordem judicial de reintegração de posse do território sagrado do Direito.

Entrevero não houve, mas 40 estudantes inapelavelmente foram fichados.

Muitos deles, agora sessentões, são juristas e advogados renomados e outros são magistrados de instância superior.

Esta noite eles vão se reunir em um restaurante de São Paulo para comemorar o que reputam um feito e relembrar a grande jornada, que protagonizaram a seis meses do AI-5.

“Nós queríamos mudanças na reitoria, mas no fundo era uma luta contra a repressão”, declara Henrique Buzzoni, advogado trabalhista, 63 anos, então com 23, organizador de Arcadas no Tempo da Ditadura, um livro que agrupa relatos de 54 personagens e também acontecimentos que se sucederam até 1977, quando Goffredo Telles leu a Carta aos Brasileiros, histórico manifesto contra a censura e o arbítrio.

Ele e Adilson Dallari ficaram encarregados de zelar pela entrada do XI de Agosto, na Rua Riachuelo, fundos da faculdade.

Mais que uma ofensiva policial, eles temiam os ataques mordazes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), bando armado que reprimia violentamente atos contra o governo.

Buzzoni já era faixa preta de judô. E Dallari tinha na cintura um calibre 38, com seis balas, que se dispunha a usar em defesa da causa. No fim daquela tarde, parou em frente um caminhão carregado de tijolos. “Chapa, é aqui a entrega?”, perguntou o motorista no endereço errado. “Pode descarregar”, apressou-se Buzzoni.

Os tijolos, cobertos de óleo cru, formaram obstáculo quase intransponível - as forças de segurança mantiveram-se à distância por um bom tempo ante a suspeita de que os futuros bacharéis ateariam fogo em tudo.

Mas alguém precisava dar ciência da retirada daquela mercadoria que veio em boa hora. Com estilo e sem remorso, num canto da nota que o caminhoneiro exibiu, Dallari firmou: “Recebido. Alfredo Buzaid.”

Buzaid era o diretor da faculdade e depois foi ministro da Justiça no governo do general Médici. Antes da invasão, ele dizia que a São Francisco era “uma jóia”.

Depois que os revoltosos foram carregados para fora e deixaram rastro de sujeira e desordem, aviltados os retratos dos notáveis nas paredes, pichações a giz, tinta e óleo combustível (“É proibido proibir”, escreveram aqui e ali), o diretor protestou diante do “doloroso escombro”. A ousadia custou aos estudantes processo administrativo moroso e o impedimento temporário da formatura.

Em 1970, afinal, um professor recebeu os rapazes e as moças e a eles entregou seus diplomas: “Vocês são maus alunos, mas vou fazer uma caridade.” Sidnei Agostinho Beneti ouviu o sermão e pegou o seu certificado. Aos 63 anos, é doutor em Direito Processual e ministro-presidente da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).