Memórias da
tomada da USP, 40 anos depois
Estudantes da época lançam hoje ‘Arcadas no Tempo da Ditadura’
Fausto Macedo, SÃO PAULO
Quarenta
anos faz hoje da ocupação das Arcadas do Largo São Francisco por uma
ruidosa turma de rapazes de cabelos longos e meninas de minissaia,
estudantes da Faculdade de Direito da USP.
Era 23 de junho de 1968, um domingo gelado e uma garoa fina caía,
quando os rebeldes, uns 80 alunos, de boas famílias, algumas de
tradição e alta linhagem, decidiram em assembléia no Centro
Acadêmico XI de Agosto tomar o edifício solene do centro de São
Paulo.
Seu propósito era desafiar os militares no poder e exigir a reforma
universitária - eles repudiavam a gravata e outras etiquetas da
cátedra. A campanha arrastou-se por 25 dias e nesse tempo eles se
ocuparam de comícios e declarações públicas contra o regime dos
generais e o anacronismo do ensino.
Até que a polícia política e a tropa de choque os desalojaram em
obediência à severa ordem judicial de reintegração de posse do
território sagrado do Direito.
Entrevero não houve, mas 40 estudantes inapelavelmente foram
fichados.
Muitos deles, agora sessentões, são juristas e advogados renomados e
outros são magistrados de instância superior.
Esta noite eles vão se reunir em um restaurante de São Paulo para
comemorar o que reputam um feito e relembrar a grande jornada, que
protagonizaram a seis meses do AI-5.
“Nós queríamos mudanças na reitoria, mas no fundo era uma luta
contra a repressão”, declara Henrique Buzzoni, advogado trabalhista,
63 anos, então com 23, organizador de Arcadas no Tempo da Ditadura,
um livro que agrupa relatos de 54 personagens e também
acontecimentos que se sucederam até 1977, quando Goffredo Telles leu
a Carta aos Brasileiros, histórico manifesto contra a censura e o
arbítrio.
Ele e Adilson Dallari ficaram encarregados de zelar pela entrada do
XI de Agosto, na Rua Riachuelo, fundos da faculdade.
Mais que uma ofensiva policial, eles temiam os ataques mordazes do
Comando de Caça aos Comunistas (CCC), bando armado que reprimia
violentamente atos contra o governo.
Buzzoni já era faixa preta de judô. E Dallari tinha na cintura um
calibre 38, com seis balas, que se dispunha a usar em defesa da
causa. No fim daquela tarde, parou em frente um caminhão carregado
de tijolos. “Chapa, é aqui a entrega?”, perguntou o motorista no
endereço errado. “Pode descarregar”, apressou-se Buzzoni.
Os tijolos, cobertos de óleo cru, formaram obstáculo quase
intransponível - as forças de segurança mantiveram-se à distância
por um bom tempo ante a suspeita de que os futuros bacharéis
ateariam fogo em tudo.
Mas alguém precisava dar ciência da retirada daquela mercadoria que
veio em boa hora. Com estilo e sem remorso, num canto da nota que o
caminhoneiro exibiu, Dallari firmou: “Recebido. Alfredo Buzaid.”
Buzaid era o diretor da faculdade e depois foi ministro da Justiça
no governo do general Médici. Antes da invasão, ele dizia que a São
Francisco era “uma jóia”.
Depois que os revoltosos foram carregados para fora e deixaram
rastro de sujeira e desordem, aviltados os retratos dos notáveis nas
paredes, pichações a giz, tinta e óleo combustível (“É proibido
proibir”, escreveram aqui e ali), o diretor protestou diante do
“doloroso escombro”. A ousadia custou aos estudantes processo
administrativo moroso e o impedimento temporário da formatura.
Em 1970, afinal, um professor recebeu os rapazes e as moças e a eles
entregou seus diplomas: “Vocês são maus alunos, mas vou fazer uma
caridade.” Sidnei Agostinho Beneti ouviu o sermão e pegou o seu
certificado. Aos 63 anos, é doutor em Direito Processual e
ministro-presidente da Terceira Turma do Superior Tribunal de
Justiça (STJ).
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