JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO
Entre quatro paredes
Conhecimento dirigido à imediatez prática tolhe as universidades
e deixa pesquisadores sem escolha
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O conhecimento é assunto de Estado e não deve
prestar-se a capciosas tentativas de privatização indigente. Intromissões do
atual governo tentam jogar as universidades públicas na grande bacia das almas
de transferência do que é estatal para o domínio particular: passo decisivo foi
submetê-las a uma repartição gestora de todo o "sistema de ensino superior
paulista".
Justifica-se tal ato repisando que as universidades públicas sempre estiveram
submetidas a alguma secretaria.
A memória brasileira é curta, mas, aqui, curtas são as pernas da mentira. A USP
tornou-se autarquia em l944, com dotação orçamentária global e "poder de decisão
e distribuição dos recursos recebidos, mediante elaboração de orçamento
próprio".
Nesse passo, o professor Miguel Reale, membro do Conselho Administrativo do
Estado, convenceu-se de "que a autonomia seria ilusória se o reitor continuasse
a despachar com o secretário de Educação" e apresentou emenda "em virtude da
qual todas as funções daquele secretário, relativas ao ensino superior, passavam
a ser exercidas pelo reitor da USP, disposição esta que, em um primeiro momento,
se estendeu aos atos normativos das novas universidades criadas". Com decisão
unânime, "o reitor adquiriu status de secretário de Estado, passando a despachar
semanalmente com o chefe do Executivo paulista, praxe louvável que, se não me
engano, só foi respeitada até o governo de Laudo Natel" ("Minhas Memórias da
USP", disponível no site
www.scielo.br).
Por muito tempo, assim, os reitores responderam diretamente ao governador. Por
que o Cruesp [Conselho de Reitores das Universidades do Estado de São Paulo] não
poderá fazê-lo?
O governo Serra desatina: usa meios burocráticos, ditos racionalizadores, para
abolir uma função pública essencial à lógica e razão do Estado moderno: o
monopólio do saber.
Mantido pela igreja, o dogma e a censura teológico-política foram rompidos, em
secular e duro combate, pela crítica do conhecimento, reabrindo a dúvida e
reinstaurando a cultura laica, de domínio público.
Nessa luta, firmou-se o lema de Francis Bacon: "Knowledge and power meet in one"
[traduzido correntemente por "conhecimento é poder"]. Subjaz a esse vínculo uma
das condições básicas ao trabalho científico: a capacidade de afrontar o
dogmatismo e o estereótipo, mobilizando tradições de saber aliadas a descobertas
inovadoras, mantendo o conhecimento à altura de seu tempo.
Ciência-técnica-política são as suas vigas mestras.
Palavras proféticas
Bacon acata o saber ligado à prática, mas aponta, como barreira ao progresso
do conhecimento, o descaso pelas ciências básicas, únicas capazes de nutrir a
técnica, teses retomadas por Hobbes.
Hoje, quando as especializações se ampliam e o mercado invade a produção
científica, com urgência de lucros, fragmentação da pesquisa e declínio da base
acadêmica, o programa proposto por Bacon não poderia ser mais cortante.
Sua restauração do saber conjuga produção científica e poder público em
instituições definidas por formas e conteúdos inerentes à atividade científica.
Desatento à pesquisa, o Estado, nem mesmo para suas próprias tarefas, reúne
pessoas capazes: seu descaso gera "um deserto de homens". Palavras proféticas:
hoje escândalos se sucedem na República ao passo que mal aparecem estadistas
empenhados em áreas do saber.
O conhecimento dirigido à imediatez prática (utilidade social direta, subsídios
a empresas, serviço ao mercado, adestramento empregatício etc.) tolhe as
universidades, definindo linhas de investigação e critérios de "excelência",
impondo limites de tempo e deixando os pesquisadores sem escolha: ou ajustam-se
ou excluem-se.
No mundo regido pela ciência e pela técnica, dominado por centros hegemônicos, o
trabalho da teoria, o uso prudente dos conhecimentos, a prática desvinculada da
imediatez são os meios capazes de enfrentar a violência com que os interesses
lucrativos e a cobiça política estilhaçam a sociedade e a cultura.
Nem chegamos a imaginar o sentido atual do maldito conceito de imperialismo.
Investigações sociopsíquicas para fins bélicos, impulsionadas na Segunda Guerra,
converteram-se em procedimentos além da ficção científica (como abordagens
matemáticas e computacionais para simular processos biológicos complexos ou
"próteses" -pequenos chips- para corrigir danos ou dirigir cérebros normais), em
experimentos que ignoram o Código de Nuremberg [criado em 1947 pelo tribunal
internacional encarregado de julgar os nazistas].
Trilhões de dólares são investidos pelo Pentágono, a Casa Branca e as agências
de segurança na condução dessas pesquisas (ver J.D. Moreno, "Mind Wars").
O próprio Bacon poderia temê-las. Em sua utopia, discute quais invenções,
experiências e descobertas devem ser publicadas ou escondidas, sob juras de
segredo. Só algumas são reveladas ao Estado.
Sobre os critérios dessa escolha, nada é esclarecido, mas o lorde chanceler
devia calcular o que dizia, partícipe que foi dos dois lados: do Estado
repressor e da ciência em luta contra a censura.
Todo aquele poderio não se estriba apenas em riqueza material: um forte legado
do saber renascentista, em especial seu viso puritano, foi transposto para a
Nova Inglaterra e alimentado em Harvard, logo após a chegada dos peregrinos e,
depois, em Yale.
Quase 400 anos de vida universitária independente, contra o obscurantismo na
colônia portuguesa. O tanto que conseguimos, em menos de um século, não merece
ser destruído.
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
é professora titular de filosofia da USP e da Universidade Estadual de Campinas
e autora de Homens Livres na Ordem Escravocrata (ed. Unesp).