JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO
"Universidade não é "brinquedo caro"
Diretor da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Gabriel Cohn é contra
a invasão da reitoria, mas pró-autonomia
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
A pauta de
reivindicações dos estudantes que ocuparam a reitoria da USP é extensa e mistura
alhos com bugalhos.
Para quem vê de fora, é difícil entender como o número de refeições a ser
oferecido pelo chamado "bandejão" pode se relacionar a uma suposta ameaça à
autonomia universitária.
Mas o fato é que o movimento dos alunos, acompanhado da greve decretada pelos
professores na última quarta, voltou a acender um debate sobre o papel da
universidade pública no Brasil.
Se isso é bom ou mau, entretanto, parece tratar-se de uma outra história.
O cientista político Gabriel Cohn, diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP [FFLCH], é contra a invasão promovida pelos alunos e
acha que ela danifica a imagem da universidade na sociedade. "Ela prejudica as
relações internas e, do ponto de vista externo, tende a desmoralizar a
instituição", diz na entrevista a seguir.
Para Cohn, o único decreto do governador José Serra (PSDB) que pode causar dano
futuro e que merece ser discutido é o que estabelece a criação da Secretaria de
Ensino Superior, a cargo de José Aristodemo Pinotti.
O decreto é parte de um conjunto que, segundo os manifestantes, coloca em jogo a
autonomia da instituição.
Um dos mais polêmicos é o número 51.636, que obriga os órgãos públicos do Estado
a fazer a execução orçamentária no Siafem (sistema eletrônico do governo). O
governo do Estado nega que tais medidas possam ferir a autonomia das
universidades estaduais.
FOLHA - A ocupação parece ter ganho uma dinâmica e força próprias desde
que teve início. O sr. acredita que o movimento dos estudantes foi subestimado
pela comunidade universitária e pela sociedade?
GABRIEL COHN - Esse movimento condensa um grande número de linhas de
força na sociedade, bastante díspares. Ele é muito complexo, mesmo quando parece
agir de maneira simples, e assinala uma reconfiguração interna da universidade,
que devemos tentar compreender antes que a instituição toda vá de roldão.
FOLHA -
A imprensa parece ter percebido tarde a polarização do movimento e o aumento da
temperatura do embate entre estudantes e reitoria. Acredita que isso seja mais
um sinal do distanciamento entre universidade pública e os meios de comunicação?
COHN - Imprensa e universidade
deveriam ter tudo a ver, mas, de fato, parecem "desafinadas". Como elas se
voltam de modos diferentes para a sociedade, nenhuma conseguiu definir bem o que
a outra espera dela e, a sociedade, de ambas. É uma tarefa urgente.
FOLHA -
O sr. acha que a ocupação marca um novo momento no movimento estudantil
brasileiro? É possível traçar paralelos quanto à importância do posicionamento
dos estudantes na sociedade hoje e nos anos do regime militar?
COHN - De imediato, me parece que
assinala um grave problema que a sociedade brasileira (e não só ela) enfrenta,
que é o da crise da representação política, em todos os seus níveis e dimensões.
FOLHA -
O governador disse que a ocupação da reitoria da USP era baseada em "mentiras".
O sr. considera que os decretos de fato ferem a autonomia universitária?
COHN - Há má informação generalizada.
Por exemplo, as universidades públicas prestam, sim, contas ao erário.
Quanto aos decretos, o ponto não é tanto que causem dano direto à autonomia aqui
e agora, mas que, especialmente no caso do primeiro deles [que estabelece a
criação da Secretaria de Ensino Superior], há toda condição para isso no prazo
mais longo, no que se refere à vital relação entre ensino e pesquisa.
FOLHA -
Como o movimento danifica a imagem da universidade? Os críticos do atual
sistema, por exemplo, apressam-se em usar episódios como esse como argumento
para discutir a própria existência da universidade pública e os gastos que o
Estado tem com ela.
COHN - Nesse ponto entro em área de
controvérsia. Creio que, independentemente dos objetivos procurados, um
movimento como esse, centrado na ocupação do centro nervoso da universidade e
voltado para um processo de negociação viciado desde o início, acaba causando
mais mal do que bem.
Mas nada de demonização: a sociedade deve tomar conhecimento de que episódios
desse tipo dizem tanto sobre a vitalidade da universidade quanto sobre a sua
dificuldade para ajustar-se às novas exigências que ela próprio contribui para
criar, ao se expandir como vem fazendo. Seja como for, a idéia de que a
universidade pública é uma espécie de "brinquedo caro" é falsa e deve ser
combatida sem descanso.
FOLHA -
Há uma crítica corrente (ver em http://ocupacaousp.blog.terra.com.br) de que a
FFLCH estaria mais presente no movimento devido à tradição "encrenqueira". O que
o sr. pensa disso?
COHN - Até pelo seu tamanho e pela
diversidade interna (da aerofotometria ao sânscrito, com dezenas de escalas),
alimentados ambos pela sua tradição de contestação e crítica, a FFLCH tem
especial visibilidade. Mas seria erro grave imaginar que a turbulência se esgota
nela. Fazer isso significaria perder de vista as múltiplas formas de experiência
que a universidade comporta e o modo como elas se entrelaçam nos momentos de
crise.
FOLHA -
Independentemente do desfecho desse episódio, acredita que a autonomia
universitária deveria ser rediscutida com o Estado?
COHN - A autonomia universitária é
um desafio constante naquilo que diz respeito ao seu exercício. Nesse nível,
ela deve ser discutida com o Estado e a sociedade, sempre.
Para isso, todavia, é preciso que a universidade esteja segura da sua
integridade institucional e dos recursos para mantê-la.