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São Paulo, 07 de março de 2007
JORNAIS

Folha de S.Paulo

Opinião
Tendências/Debates
Frankenstein na volta às aulas
ALCIR PÉCORA e FRANCISCO FOOT HARDMAN
A nova Secretaria de Ensino Superior ainda não disse a que veio, e os primeiros sinais que emitiu sobre si própria não são alentadores

NA VOLTA às aulas, o ambiente universitário terá de conviver com uma nova criatura, por ora ainda meio desapercebida numa névoa de confusão ou de programática cortina de fumaça: a Secretaria de Ensino Superior.
Gerada pelos decretos do primeiro dia do governo Serra que intervêm na autonomia de gestão financeira, administrativa e tecnocientífica das universidades estaduais paulistas, a nova secretaria ainda não disse a que veio, e os primeiros sinais que emitiu sobre si própria não são alentadores.

De início, a nova secretaria, estranhamente híbrida, pois sucedânea da Secretaria de Turismo, reclamava para si a presidência do Conselho de Reitores (Cruesp), o que não chegou a vingar. Com o alerta geral, foi restituída a quem de direito -os reitores-, embora se mantendo o aumento do titular da secretaria recém-criada na composição do órgão. A sua presença, ao lado dos secretários de Desenvolvimento e da Educação, continua a dar, na prática, vantagem ao governo.

O "engano" do decreto que, entre outras coisas, depusera a reitora da USP do cargo sem aviso prévio foi só em parte reparado, e questões de fundo permanecem intocadas.
As universidades públicas paulistas, comprometidas com a pesquisa, além do ensino e da extensão, foram incompreensivelmente apartadas da Secretaria de Ciência e Tecnologia, onde sempre estiveram bem situadas.
O efeito paradoxal da nova situação é o predomínio de uma concepção divisionista entre pesquisa e ensino, como a que existe nas universidades privadas, que serão, aliás, de longe, o contingente maior da nova secretaria.

Também foi englobada por ela, de modo a acentuar sua forma híbrida e arbitrária, o Memorial da América Latina, que pouco tem a ver com ensino superior, mas, curiosamente, ficaram fora dela as Fatecs, mais afins ao rótulo que engendra o novo ente. A Fapesp, por sua vez, decisiva para o incremento da pesquisa nas universidades, fica livre da companhia delas na doravante Secretaria do Desenvolvimento, da qual até os termos ciência e tecnologia foram banidos.

Ante essa criatura mal ajambrada, que só leva à hipertrofia da máquina estatal que o governador diz querer enxugar, várias perguntas não calam.
Por que a melhor pesquisa científica, tecnológica e em humanidades e a melhor educação superior pública do país devem ser lançadas na vala comum da indústria privada de diplomas, que ora o secretário Pinotti pretende refundar sob a alcunha de "Sistema de Ensino Superior do Estado"?

Por que arrastar o setor de ponta da formação superior de professores e pesquisadores para o mesmo processo de mediocrização que gerou o desmanche da escola básica, fundamental e média, processo de que os governantes são artífices ou cúmplices, no Brasil e, muito vergonhosamente, no Estado de São Paulo, conforme demonstram, com dados terríveis, reportagem de capa e caderno especial desta Folha, em 8/2, e, agora, em 6/3, na reprovação de todas as mais de 600 escolas estaduais da capital paulista no último Enem?

O pacote de boas intenções do secretário Aristodemo Pinotti e do secretário-adjunto Eduardo Chaves é flagrantemente extemporâneo. Está claro que não se vai resgatar pelo fim a calamidade começada cedo. Ademais, uma preocupação séria com a efetiva melhora do ensino básico, fundamental e médio constituiria matéria desde sempre afeita à Secretaria da Educação. Querer transferir essa responsabilidade para as universidades estaduais nos parece manobra diversionista e demagógica. Nossas licenciaturas, das melhores do país, continuam a formar excelentes professores, que só não são aproveitados como deviam porque o governo lhes falta com infra-estrutura, vagas, salários e carreiras decentes.

Se governos anteriores do Estado mais rico da Federação foram incapazes ou negligentes em priorizar políticas e recursos para salvar uma educação falida, por que criar mais essa secretaria, com se sabe lá quantos novos postos, que, afora a acomodação de aliados, maldisfarçada num baú de idéias anacrônicas, não parece servir para nenhuma boa causa?

A não ser que, ao dispersar gastos e fragmentar políticas, a secretaria frankensteiniana seja mais uma cortina de fumaça ante os grandes dilemas da educação brasileira, dos quais em geral todos os governos federais, estaduais e municipais têm irresponsavelmente se furtado, entre subterfúgios e parolagens.
ALCIR PÉCORA, 52, crítico literário, é diretor do IEL-Unicamp (Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas). FRANCISCO FOOT HARDMAN, 54, é professor titular de teoria e história literária e coordenador de Pesquisa do IEL-Unicamp. Foi editorialista da Folha.