Que universidade é essa?
Distinção entre poder e autoridade é crucial para entender a crise
por que passa a USP
RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A USP é a melhor universidade da América do Sul. E é a única
universidade pública brasileira que não tem eleições diretas para
reitor. Esses dois traços estão ligados ou não? Parte da comunidade
acredita que ela é a melhor porque não cai na demagogia. Outra parte
acha que não ter eleições diretas é sério déficit democrático.
Muito da discussão se deve a uma confusão entre poder e autoridade. Na
academia, o que conta é autoridade. Ter autoridade não é mandar. "Auctoritas"
é algo difuso. Vem do latim "augere" -crescer, desenvolver, animar,
embelezar-, que, por sinal, também dá "augusto". Expressa um sentido
moral, um respeito à qualidade. Passa pelo reconhecimento do mérito no
pensar, no criar. Na democracia, o poder vem da eleição. Mas nem voto
nem nomeação dão autoridade.
Dentro da academia, um poder sem autoridade é vazio. Uma universidade ou
um departamento chefiados por quem não tem autoridade acadêmica perde em
respeito.
Povo USP
Assim, primeiro ponto: uma universidade deve ter qualidade. Esse é o seu
diferencial específico. Deve formar bons alunos, mas, se tiver ambição
de liderança, deve formar doutores muito bons e fazer pesquisa entre boa
e ótima. Isso a USP faz. Segundo: "democracia", o poder do povo, exige
uma pergunta. O que é o povo? Há um "povo USP", composto de seus
docentes, funcionários e alunos, que teria o direito ético de eleger a
direção da universidade? Não. O povo que existe é o paulista, que
sustenta a USP. Os servidores, docentes ou não, que ele paga, e os
alunos, que recebem de graça um ensino muito bom, não são um povo.
Ninguém de nós cogitaria que a direção das secretarias de Estado fosse
eleita por seus funcionários, ou a dos hospitais pelos seus servidores.
Mas, se o reitor da USP fosse nomeado (e demitido) pelo governador como
um secretário
de Estado, seria um desastre.
A autonomia é necessária -justamente, porque a universidade se distingue
por sua qualidade. Sou contra a "meritocracia". Numa democracia, o poder
("kratos") é do povo. Ter poder implica definir metas para o governo. A
universidade é um meio excelente para certos fins que nossa sociedade
consensuou democraticamente: formação de profissionais (na graduação) e,
nas melhores instituições, formação de pesquisadores e avanço na
pesquisa.
Sendo um meio, a universidade tem de ser muito boa. Daí que nela deva
contar não o poder, mas a autoridade. O governador recebe poder do povo.
Já a autonomia da universidade decorre de sua autoridade. Isso a deve
afastar dos confrontos partidários -cujo lugar correto está na disputa
pelo poder político. A pesquisa pós-graduada constitui o segredo interno
da boa universidade. Ninguém sabe disso fora dela. Quando a imprensa ou
os políticos se debruçam sobre as universidades, quando discutem
vestibular ou cotas, pensam na graduação.
Mas o que distingue uma universidade em segundo grau -isto é, aquela que
forma quadros para serem criadas e desenvolvidas outras instituições de
ensino superior, fazendo o que chamamos de "nucleação" (isto é, formar
núcleos de bons docentes)- é sua pujança na pós-graduação. E isso
porque, no Brasil, à diferença dos EUA, quase toda a pesquisa, inclusive
parte da tecnológica, se faz nas universidades. Mas quem é o sujeito da
autonomia, quem -dentro da universidade- detém legitimidade para, em
nome dela ("autos"), dar-lhe suas regras, suas leis (o "nomos")? Aqui
está o problema.
Neste ano, teremos a sexta eleição para reitor por regras que fazem com
que, depois de um primeiro turno em que votam mais de 1.200 membros das
congregações e conselhos, o nome se defina num segundo turno restrito
aos 256 membros dos conselhos centrais. Das cinco eleições realizadas
desde 1989, só numa venceu um candidato de oposição ao reitor. Milhares
de docentes doutores nem sequer votam no primeiro turno, e o segundo
turno é próximo demais do poder. Isso não é bom. Afasta o reitor da
comunidade.
Tal situação favorece a greve de (quase) todo outono e a reivindicação,
que não tem apoio da maioria acadêmica, por eleições diretas. Por que
digo que não tem apoio? Porque em nenhuma escolha depois de 1985 houve
um candidato sequer que fosse à consulta direta. Todos aceitaram as
regras do jogo. Mas ficou uma distância entre o reitor e sua comunidade,
que o enfraquece.
Outro sistema
Na comunidade acadêmica, muitos não aceitam eleições diretas. Vários
bons pesquisadores prefeririam um sistema que funciona bem, fora da
América Latina: o do comitê de busca que entrevista os selecionados e,
em razão de seu currículo e de seus projetos, escolhe o reitor. Mas não
creio que esse sistema funcione aqui, porque contraria as tradições
construídas nas últimas décadas e que tendem à eleição. Nosso sistema
foi testado, está superado e defendo sua mudança para o futuro. Mudá-lo
a quatro meses das eleições seria ilegítimo. Mas ele precisa ser
ampliado.
Concluindo: primeiro, toda e qualquer mudança na direção da universidade
só terá valor se aumentar, e não diminuir, a qualidade da pesquisa
científica que fazemos. É por isso que muitos se opõem à eleição direta,
na qual veem a subordinação da qualidade a questões políticas, a redução
da autoridade ao poder. Segundo, precisa aumentar sensivelmente o
colégio que escolhe o reitor. Pessoalmente, defendo que um colégio mais
amplo -que inclua os membros dos conselhos departamentais e das
comissões estatutárias nas faculdades- vote no primeiro turno; que o
segundo turno também se amplie, talvez com o mesmo colégio; e que se
negocie com o governador a substituição da lista tríplice por uma
representação da sociedade no colégio eleitoral, de modo que a eleição
do reitor se complete pelo voto.
Há, sem dúvida, outras propostas de ampliação. Mas qualquer mudança na
eleição só tem sentido se for para aumentar a legitimidade do reitor
-fazê-lo mais representativo, sim, mas lhe dar maior "auctoritas". Na
USP, a autoridade foi para os líderes de bons grupos de pesquisa. A
reitoria precisa recuperar a liderança, mas esta não é questão de poder,
e, sim, de qualidade.
RENATO JANINE RIBEIRO
é professor titular de ética e filosofia política na USP e foi diretor
de avaliação da Capes entre 2004 e 2008. É autor de "O Afeto
Autoritário" (ed. Ateliê). |