USP USP USP comparada
Universidade de Paris por Katia Mattoso
DA REDAÇÃO
A seguir, leia trechos da entrevista concedida por telefone pela
historiadora Katia Mattoso.
(ERNANE GUIMARÃES NETO)
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Sempre se diz que o governo federal atual deve muito ao professorado da
USP. Em torno do presidente [Lula], pelo menos nos primeiros anos, havia
uma presença muito marcante de docentes, principalmente da USP, das
áreas de sociologia, história etc. Não sei se continua assim... Outra
coisa é a consciência política que se tem e as reações diante de
problemas que são, na realidade, de sobrevivência.
Mas é um problema em todo o mundo. Eu, por exemplo, ensinei na Sorbonne,
uma das mais tradicionais e mais arcaizantes, do ponto de vista
político, universidades de Paris. Nessa universidade, houve uma greve
iniciada em fevereiro e que terminou há apenas três semanas [no final de
maio, as aulas foram retomadas, mas ainda há protestos].
Nas greves, as lideranças são uma minoria muito bem preparada para
mobilizar os alunos. Eles têm técnica, sabem como devem fazer. Na
Sorbonne é assim também.
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No caso da Sorbonne, as reivindicações não eram salariais, mas sim
contra o governo, que queria introduzir medidas que não foram aceitas
pelos professores, sobre transformação no funcionamento dos
departamentos.
Em todos os países que conheço, mesmo na Grécia [onde vive], a greve é
uma coisa recorrente, que passou a ser um recurso mesmo para questões
que poderiam ser solucionadas muito rapidamente.
Falta boa vontade para o diálogo entre os que fazem reivindicações e os
que estão do outro lado. Na Grécia, vi greves durarem seis meses. São
apoiadas pelo corpo discente. Na França, essa foi uma greve de protesto
pela soberania da universidade em relação ao ministério da Educação, que
quis fazer reformas sem se haver entendido com o corpo docente. O acordo
foi entre o corpo docente e o corpo discente; formou-se uma resistência
muito grande.
É interessante que a adesão foi de todas as partes: da mais
extrema esquerda à mais extrema direita. Na Grécia também há consenso
entre estudantes e professores. A situação não é como antigamente,
quando havia mais greve de estudantes que de professores.
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As universidades recebem muito mais alunos do que realmente pode. Há uma
desproporção entre o corpo docente e o discente. A carga horária de um
professor na Sorbonne é de seis horas por semana, no máximo -incluindo
seminários. E mesmo assim os franceses acham muito.
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Na França o reitor é eleito pelo corpo docente e pelo corpo discente,
por meio de conselhos. O governo não pode fazer nada, pois as
universidades são independentes -a independência data da época medieval:
ninguém toca nelas. É o modelo mais apropriado. Que conhecimento tem o
governador da realidade de uma universidade para julgar quem seria o
mais capaz para ela?
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Quando fui candidata ao posto de história do Brasil [na Sorbonne], numa
das instâncias da universidade que votam pelos novos professores alguém
se levantou e objetou a meu nome porque "soube" que eu seria de
esquerda. Só porque eu vinha do Brasil, eu teria de ser de esquerda.
Nunca fiz política nenhuma -não sou de direita, tampouco do Partido
Comunista...
FOLHA - Os movimentos grevistas na França partem de sindicatos?
MATTOSO
- De sindicatos, sim, mas na Sorbonne todos aderiram. Mas não tem nada a
ver com as greves da época em que eu morava no Brasil. Após um mês, tudo
entrava em ordem; agora, não: há um mal-estar generalizado. Quando eu
ensinava no Brasil, as greves duravam muito menos tempo do que agora. Na
França os professores irão dar um mês e meio de aula para cobrir um
semestre; na Grécia é assim também. Há que perguntar o que é que se
aprende num semestre desses. Os professores, apesar de aderirem à greve,
no final se sentem culpados, pois os alunos mal veem a matéria.
FOLHA - Apesar dessa preocupação, na greve francesa deste ano os alunos
mantiveram piquetes e fecharam instituições...
MATTOSO
- Sim, havia inclusive professores que davam aulas fora da universidade,
porque estava fechada. O mais interessante é que a greve na Sorbonne
começou com gente
mais à esquerda, mas todo o corpo docente aderiu -com raríssimas
exceções.
FOLHA - A Sorbonne representa a mentalidade política francesa?
MATTOSO
- A Sorbonne é conhecida por abrigar professores de direita, mas nos
últimos anos tem havido um princípio de abertura, com mais pessoas de
centro-esquerda. O corpo discente, como de hábito, tem de tudo. Todas as
universidades francesas são obrigadas a terem como alunos pessoas
advindas de todos os meios sociais.
KATIA MATTOSO
aposentou-se como professora emérita de história do Brasil em Paris 4 e
lecionou na Universidade Católica de Salvador e na Universidade Federal
da Bahia. É autora de "Ser Escravo no Brasil" (Brasiliense).
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