Atrás das cortinas
no teatro do etanol
MARIA APARECIDA DE MORAES SILVA
Proponho-me a trazer ao palco os atores até então deixados atrás
das cortinas: os cortadores de cana dos canaviais paulistas
NOS ÚLTIMOS dias, os diversos meios de
comunicação deram cobertura às viagens do presidente da República
aos países europeus e aos EUA. Neste último, ao discursar na 62ª
Assembléia Geral da ONU, ele defendeu, mais uma vez, o argumento dos
biocombustíveis como solução para os problemas climáticos do
planeta.
Na mesma ocasião, segundo reportagem desta Folha (Brasil, 26/9), o
chanceler da República, Celso Amorim, rebateu a tese de que a
produção de alimentos é afetada pelo crescimento da cultura
canavieira para a produção do etanol, citando o exemplo do Estado de
São Paulo.
Essa última afirmativa, no entanto, vai na contramão dos dados
oficiais do Instituto de Economia Agrícola, que apontam para a
diminuição das áreas de 32 produtos agrícolas, dentre eles: arroz
(10%), feijão (13%), milho (11%), batata (14%), mandioca (3%),
algodão (40%) e tomate (12%), sem contar a redução de mais de 1
milhão de bovinos e a queda da produção de leite no período
2006-2007.
Diante desses discursos, proponho-me a trazer ao palco do teatro do
etanol os atores até então deixados atrás das cortinas: os
trabalhadores rurais, os cortadores de cana dos canaviais paulistas.
O que eles querem é só um "dedinho de prosa" com o presidente. Num
diálogo imaginário, eles relatariam as "coisinhas simples" do
cotidiano, do trabalho, da vida, enfim.
Na sua grande maioria, são migrantes provenientes dos Estados do
Nordeste e do norte de Minas Gerais (em torno de 200 mil, segundo a
Pastoral do Migrante). São homens, jovens entre 16 e 35 anos de
idade.
Durante oito meses ao ano, permanecem nas cidades-dormitório em
pensões (barracos) ou nos alojamentos encravados no meio dos
canaviais.
Divididos em turmas nos atuais 4,8 milhões de hectares dos canaviais
paulistas, são invisíveis aos olhos da grande maioria da população,
exceto pelos viajantes das estradas que os vêem enegrecidos pela
fuligem da cana queimada, chegando, até mesmo, a ser confundidos com
elas.
São submetidos a duro controle durante a jornada de trabalho. São
obrigados a cortar em torno de dez toneladas de cana por dia. Caso
contrário, podem: perder o emprego no final do mês, ser suspensos,
ficar de "gancho" por ordem dos feitores (sic) ou, ainda, ser
submetidos à coação moral, chamados de "facão de borracha",
"borrados", fracos, vagabundos.
A resposta a qualquer tipo de resistência ou greve é a dispensa.
Durante o trabalho, são acometidos pela sudorese em virtude das
altas temperaturas e do excessivo esforço, pois, para cada tonelada
de cana, são obrigados a desferir mil golpes de facão. Muitos sofrem
a "birola", as dores provocadas por câimbras.
Os salários pagos por produção (R$ 2,5 por tonelada) são
insuficientes para lhes garantir alimentação adequada, pois, além
dos gastos com aluguéis e transporte dos locais de origem até o
interior de São Paulo, são obrigados a remeter parte do que recebem
às famílias.
As conseqüências desse sistema de exploração-dominação são: - de
2004 a 2007, ocorreram 21 mortes, supostamente por excesso de
esforço durante o trabalho, objeto de investigação do Ministério
Público; - minhas pesquisas em nível qualitativo na macrorregião de
Ribeirão Preto apontam que a vida útil de um cortador de cana é
inferior a 15 anos, nível abaixo dos negros em alguns períodos da
escravidão.
Constatei as seguintes situações de depredação da saúde: desgaste da
coluna vertebral, tendinite nos braços e mãos em razão dos esforços
repetitivos, doenças nas vias respiratórias causadas pela fuligem da
cana, deformações nos pés em razão do uso dos "sapatões" e
encurtamento das cordas vocais devido à postura curvada do pescoço
durante o trabalho.
Além dessas constatações empíricas, as informações recentes do INSS
para o conjunto do Estado de São Paulo, no período de 1999 a 2005,
são: - o total de trabalhadores rurais acidentados por motivo típico
nas atividades na cana-de-açúcar foi de 39.433; por motivo
relacionado ao trajeto, o total correspondeu a 312 ocorrências; -
quanto às conseqüências, os números totais para o período são: -
assistência médica: 1.453 casos; - incapacidade inferior a 15 dias:
30.465 casos; - incapacidade superior a 15 dias: 8.747 casos; -
incapacidade permanente: 408 casos; - óbitos: 72 casos.
Nesse momento, os atores saem do palco e voltam para trás das
cortinas.
O presidente, ouvinte, sabe que eles falaram a verdade. Sertanejo
não mente: esse é o código do sertão.
MARIA APARECIDA DE MORAES SILVA, doutora em sociologia pela
Universidade de Paris 1 (França), é professora livre-docente da
Unesp (Universidade Estadual Paulista). É autora de "A Luta pela
Terra: Experiência e Memória", entre outras obras. |