Mestres viram doutores e acabam
demitidos em universidades privadas
19/09/2008 - A falta de mão-de-obra
qualificada é uma das maiores ameaças ao
crescimento econômico, segundo alguns
economistas, empresas ou mesmo o
governo. O país forma mais de 10 mil
doutores por ano. No entanto, esta elite
do meio acadêmico brasileiro, cada vez
mais, encontra dificuldades para
arranjar emprego, sobretudo nas
universidades, responsáveis pela
preparação de profissionais de ponta,
supostamente, tão exigidos pelo mercado
de trabalho. O problema ocorre, de
acordo com o Sindicato dos Docentes de
Instituições de Ensino Superior (Andes),
na rede privada, onde as demissões de
professores com doutorado ou
livre-docência, nos últimos cinco anos,
são observadas com freqüência, logo após
a obtenção do título acadêmico.
Ronaldo Motta, secretário de Ensino
Superior do MEC, diz que o governo
ampliará a fiscalização para evitar as
demissões
"Quando fui fazer a homologação da
rescisão de meu contrato de trabalho no
sindicato, tive uma surpresa: encontrei
quatro outros professores de direito",
relata José Cretella Neto, ex-docente da
Universidade Paulista (Unip), a maior do
país em número de alunos, demitido em
2004, meses depois de receber a
livre-docência. "Dois desses colegas
tinham obtido o doutorado na USP, como
eu. Um outro, na Universidade
Complutense de Madri, Espanha.
Finalmente, o último, na Universidade de
Nagoya, no Japão. Perguntei o porquê de
estarmos sendo dispensados e todos me
deram a mesma informação: redução de
custos", conta.
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, as universidades devem ter um
terço do corpo docente formado por
mestres ou doutores. Em geral, esses
professores titulados recebem um
percentual a mais por hora/aula. "Como a
lei exige de forma vaga, as
universidades privadas preferem ter um
terço de mestres e nenhum doutor.
Preferem também especialistas com cursos
lato sensu", afirma Cretella. O
professor, no entanto, faz questão de
sublinhar que as universidades cumprem a
lei, mas defende que a lei precisa mudar
porque "a economia de custos das
universidades para fazer frente à
concorrência" está comprometendo a
qualidade do ensino superior.
"Não é a realidade", afirma Hermes
Ferreira Figueiredo, presidente do
Sindicato das Entidades Mantenedoras de
Estabelecimentos de Ensino Superior do
Estado de São Paulo (Semesp) e
proprietário da Universidade Cruzeiro do
Sul. "Casos isolados podem dar a
impressão de que há um movimento de
demissão, mas isso não é uma rotina no
setor", garante. Segundo ele, o país
está formando mais doutores, as
universidades privadas estão empregando
mais titulados, porém, a demanda
continua inferior à oferta desta
mão-de-obra. "O número de doutores
depende do programa pedagógico de cada
instituição, a universidade é como
qualquer empresa, há uma avaliação de
desempenho, não publicou durante o ano,
será dispensado", diz Figueiredo.
O presidente do Andes, Ciro Teixeira
Correia, discorda: "A situação é séria e
se dá pelo descontrole do governo sobre
o setor privado, muitos professores
estão escondendo o título de doutorado".
De acordo com ele, a solução passa por
adaptar o sistema privado às regras das
universidades públicas, onde há o regime
de dedicação exclusiva. "Isso faz toda a
diferença na qualidade do ensino. O
professor-horista não tem vínculo com a
universidade, esta falta de
comprometimento reduz a produção de
pesquisa e sem ela o conhecimento não
avança e o ensino fica pior", acredita.
Figueiredo rebate: "Uma universidade
numa cidadezinha de Tiririca da Serra
não tem condição de contratar um doutor
por tempo integral para pesquisar e em
nenhum lugar está escrito ou provado que
um doutor é melhor professor do que um
profissional com experiência". Segundo
Figueiredo, o mercado de trabalho para
doutores é "quase exclusivo" em
universidades e, diante do aumento do
número de titulados, está ocorrendo uma
"pressão das corporações" pelo
crescimento de vagas. Para ele, as
demissões podem ocorrer por supressão de
cursos, por exemplo.
Somente uma pesquisa detalhada poderia
comprovar os motivos reais. Apesar de
afirmar que as demissões têm pouca
relação com os custos, Figueiredo
reconhece que a exigência por mais
professores titulados aumenta as
despesas: "É fácil falar em ensino mais
caro por uma mensalidade menor, mas esta
equação não fecha". Se o motivo das
demissões é de difícil aferição, as
conseqüências já foram medidas. No
Índice Geral de Cursos, avaliação das
instituições divulgada pelo Ministério
da Educação no início do mês, apenas
4,9% das universidades privadas
receberam notas máximas (4 ou 5), sendo
que as maiores do país ficaram entre as
40 piores na lista de 173 avaliadas.
O Valor consultou o site de várias
universidades privadas e constatou que
poucas atendem à portaria 2.864/2005,
que obriga a divulgação nominal do corpo
docente de cada curso, indicando a área
de conhecimento, titulação, qualificação
profissional e regime de trabalho
(inciso IV). A maioria dos sites está
preocupada em convencer o potencial
aluno de que as instituições oferecem
qualificação profissional, ampliando as
chances no mercado de trabalho e nenhuma
delas informa o número de alunos por
turma que, em muitos casos, passa de
100, obrigando o professor a dar aula
com microfone como em cursinhos
pré-vestibular.
"Isto tudo decorre da falta de
fiscalização por parte do governo",
acusa Correia. É justamente essa
promessa que faz o Ministério da
Educação em resposta a onda de demissões
de doutores: ampliar o cerco às
instituições privadas. O secretário de
Ensino Superior do MEC, Ronaldo Motta,
reconhece que o problema "é sério", mas
acredita que será evitável à medida que
os processos de regulação e supervisão
tornem-se mais rigorosos, segundo ele,
como tem sido a prática recente. No
caso, o próprio IGC. O índice contempla
entre suas variáveis o corpo docente,
quanto à titulação ("valorizando
sobremaneira os doutores") e o regime de
trabalho (identificando negativamente a
presença excessiva de horistas).
Como agora a divulgação será anual,
Motta garante que a tendência será de
queda na avaliação das instituições com
baixo número de doutores. "Quem agir
assim, demitindo seus doutores, será
certamente identificado na avaliação
institucional e será penalizado com a
assinatura de um protocolo de
compromisso, tal como expresso na Lei
dos Sinaes", diz, referindo-se ao
Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Superior, criado em 2004.
Motta, porém, ressalta que não há uma
regra universal que aponte que todos os
professores devam ter dedicação
exclusiva.
No Senado Federal, um projeto-de-lei (PL)
começou a tramitar, há um ano, para
obrigar as universidades privadas a
estabelecer um corpo docente formado de,
pelo menos, 25% de doutores, 50% de
mestres (ou doutores) e 40% de
professores em regime de trabalho em
tempo integral. A agilidade na
tramitação e a aprovação do PL dependem,
no entanto, da vontade do governo de
defender a idéia, pois a relatoria
estava com um senador do PT, Siba
Machado, suplente da ex-ministra Marina
Silva, que retornou ao cargo.
"A educação superior no Brasil tem dado
passos gigantescos nos últimos anos. Mas
são passos capengas", diz Arthur
Virgilio Neto (PSDB-AM), autor do PL. "O
número de cursos e alunos aumenta, mas a
qualidade cai. Por que isso ocorre? Pela
massificação desacompanhada de rigor na
composição do corpo docente, o que
repercute na tímida atuação das
universidades brasileiras no campo das
pesquisas. É isso que pretendo
corrigir", justifica o senador. A idéia,
porém, foi recebida com protestos pelas
universidades.
Até mesmo instituições que contratam um
grande número de professores titulados,
como as PUCs, reagiram à criação desta
obrigatoriedade legal. Segundo o Andes,
a concorrência no setor tem empurrado as
universidades tradicionais a
adaptarem-se às regras de mercado. "A
aprovação desta lei seria descabida. Não
é o Legislativo que deve dizer quantos
doutores tem que ter uma universidade,
que não é uma concessão pública, como os
meios de comunicação, que não são
obrigados a contratar só doutores em
jornalismo", compara Figueiredo.
Fonte: Valor Econômico |