[ n. 192/setembro 2004 ]

Entrevista
Avanço do conhecimento

Reitor da Unicamp de 2002 a 2006, Carlos Henrique de Brito Cruz nasceu em 1956 no Rio de Janeiro. Graduou-se em Engenharia Eletrônica no Instituto Tecnológico de Aeronáutica, em São José dos Campos, SP. Trabalhou na Universitá degli Studi, em Roma, Itália, e nos Bell Labs, em Holmdel, New Jersey, EUA. Foi duas vezes (1991/94 e 1998/2002) diretor do Instituto de Física e pró-reitor de Pesquisa (1994/98) da Unicamp. Acredita que um ensino superior público voltado para a educação de pessoas e o avanço do conhecimento é essencial para o desenvolvimento do País.

Jornal UNESP: A denominação reforma universitária para o debate que envolve hoje o ensino superior nacional é, de fato, a mais adequada?
Carlos Henrique Brito Cruz: Seria mais positivo que esse processo se chamasse plano estratégico para desenvolvimento do ensino superior público no Brasil. Haveria aí vantagens do ponto de vista do estabelecimento de focos e de uma estratégia de longo prazo. Quando se fala em educação superior, por exemplo, não se pode esquecer que não se trata apenas de discutir as universidades, pois há outros participantes do sistema, como faculdades isoladas e escolas centros educacionais, entre outras. Também é essencial lembrar que nenhum país se fez desenvolvido sem ter um fortíssimo suporte do ensino superior público.

 
“ Nenhum país se fez desenvolvido
sem ter um fortíssimo suporte do
ensino superior público.”
Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Unicamp
 

JU: Por que isso acontece?
Brito Cruz: Os benefícios que advêm do bom ensino superior são públicos. Por isso, o Estado deve financiar a universidade comprometida com o ensino de qualidade e o avanço científico. É assim no mundo inteiro. Mesmo nas universidades privadas nos EUA, as pesquisas importantes são financiadas pelo Estado. É o que se chama instituição privada de objetivo público. É claro que as universidades públicas podem buscar outras fontes de recursos, mas acredito que a maior parte de seu funcionamento deve ser garantida pelo Estado.

JU: E como o Estado brasileiro vem tratando as universidades?
Brito Cruz: O ensino superior público precisa de mais atenção do que tem recebido Não quero dizer que não deva existir ensino superior privado, mas o que não é bom para o Brasil é o desequilíbrio que temos atualmente, com 25% de matrículas no ensino superior público contra 75% no ensino privado. Isso é desaconselhável do ponto de vista da qualidade da formação do aluno e da inclusão social. Esses dois objetivos são muito importantes e salta aos olhos que o ensino superior público os cumpre muito mais efetivamente do que o ensino superior privado. Basta lembrar que 95% da produção científica brasileira vem de universidades públicas e que elas são responsáveis praticamente por 100% da formação de nossos mestres e doutores.

JU: Nesse contexto, como fica o acesso à universidade superior pública?
Brito Cruz: Durante muitos anos o Brasil confiou na suposição errada de que só rico estuda na universidade pública. O IBGE, em suas pesquisas nacionais por abordagem domiciliar, demonstra o equívoco desse raciocínio. É verdade que, nas camadas mais pobres, poucas pessoas conseguem entrar no ensino superior, mas aquelas que conseguem ingressam muito mais no ensino superior público do que no privado. Abaixo de um salário mínimo o número de pessoas que freqüentam a universidade pública é três vezes maior do que o daquelas que freqüentam a universidade privada.

 
“ É o foco das universidades na educação de pessoas e no avanço do conhecimento que vai modificar e melhorar o País nos próximos 20 anos.”
 

JU: Como essas instituições públicas vão conseguir atender a demanda social por maior número de vagas?
Brito Cruz: Há duas estratégias. Uma, caracterizada pela busca de eficiência, inclui estudar formas de usar melhor o investimento que já existe. É o caso das universidades federais, que precisam dar maior ênfase aos seus cursos noturnos, altamente importantes quando se pensa em inclusão social. O segundo caminho é o do maior financiamento. É preciso lembrar que a União investe pouco no ensino superior paulista. A Constituição estabelece que cabe à União a ênfase na educação superior do País. Isso não ocorre em São Paulo. Por isso, é preciso trabalhar com a possibilidade de a União instalar no Estado de São Paulo novas, grandes e bem qualificadas universidades federais. Outra opção é a União apoiar as universidades estaduais paulistas já existentes, para que elas possam gerar mais capacidade de matrículas.

JU: Existem outras alternativas?
Brito Cruz: Outra maneira de ação seria a União tratar as instituições estaduais de ensino superior públicas como trata as privadas consideradas filantrópicas, que recebem uma significativa redução de seus custos trabalhistas desde que ofereçam um certo número de bolsas. Dessa maneira, a União poderia contribuir – e muito – para o aumento de vagas do ensino superior paulista, mantendo sempre a qualidade de seus cursos.

JU: E a inclusão social por meio do vestibular?
Brito Cruz: A discussão desse tópico recai sempre no estabelecimento de cotas. Na Unicamp, concluímos que desejamos selecionar os alunos que têm a melhor capacidade de aprendizado para que aproveitem mais os anos em que ficarão conosco. Essas pessoas podem não ser aquelas que têm maior quantidade de informações na data do exame. Após estudar o desempenho de alunos que entraram na Unicamp desde 1996, apuramos que, entre alunos que tiraram notas similares no vestibular, aqueles que vieram da escola pública tiveram melhor desempenho acadêmico em relação àqueles da escola privada.

  “ É preciso trabalhar com a possibilidade de a União instalar no Estado
de São Paulo novas, grandes e bem qualificadas universidades federais.”
 

JU: Quais as razões?
Brito Cruz: Podemos especular. Talvez o estudante oriundo da escola pública, por ter enfrentado maiores dificuldades nessas instituições de ensino médio, tenha sido obrigado a desenvolver maior capacidade de enfrentar adversidades. Portanto, ao encontrar melhores condições de ensino, desenvolve-se mais. O que não queremos é transformar o vestibular num prêmio a quem estudou mais. O exame de ingresso deve ser, sim, um instrumento para selecionar pessoas com maior capacidade de aprendizado. Para que isso ocorra, é fundamental não olhar apenas para a nota, mas levar em conta outras informações, como o tipo de escola onde o aluno fez o ensino médio. Se os ingressantes têm notas semelhantes, portanto, preferimos aquele que fez o ensino na escola pública. Esse tipo de medida adotada na Unicamp é uma forma de inclusão social que é bem vista pelo Ministério da Educação, pois valoriza o estudante oriundo da escola pública, que geralmente tem menor poder aquisitivo, e aumenta a qualidade de quem entra na universidade.

JU: Essa experiência da Unicamp pode ser levada a outras universidades?
Brito Cruz: A preservação da autonomia universitária é fundamental, principalmente num sistema de ensino superior público tão heterogêneo como o brasileiro. Nossa experiência pode não funcionar em outras instituições. A atual discussão pode indicar conceitos e objetivos do que o Brasil espera de seu ensino superior, criando mecanismos institucionais e jurídicos nessa direção, mas cada universidade vai progredir dentro de suas próprias características.

JU: Quais devem ser, então, os principais objetivos da universidade brasileira?
Brito Cruz: Os focos devem ser educação de qualidade e avanço do conhecimento. É preciso evitar dois desvios. Um, à direita do espectro político, é buscar que a universidade se volte para a inovação tecnológica. Isso cabe à indústria. Ela pode ajudar a empresa a superar desafios tecnológicos, mas somente se isso auxiliar a formação de seus alunos. O outro desvio, à esquerda, é achar que a universidade tem que resolver os problemas sociais com ações de extensão. Cabe à universidade, em primeiro lugar, formar pessoas, e estas integrarão governos e trabalharão com competência na solução de problemas sociais. Não se pode perder de vista que o papel da universidade é estratégico e estrutural. É o foco das universidades na educação de pessoas e no avanço do conhecimento que vai modificar e melhorar o País nos próximos 20 anos.

ACI - Assessoria de Comunicação e Imprensa
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