A pedido do
professor Jorge Megid Neto (FE), encaminhamos artigo As
ameaças à educação pública paulista de qualidade,
Jorge Megid Neto
Professor e Diretor da
Faculdade de Educação da Unicamp
Nos três primeiros meses deste ano, os grandes jornais do Estado de São Paulo veicularam notícias, reportagens, artigos de especialistas e comentários de leitores sobre questões ligadas à educação escolar no estado e no país. Colocaram em discussão as mazelas educacionais do ensino fundamental e médio a partir dos resultados dos exames nacionais de avaliação da educação (Prova Brasil, SAEB, ENEM). Em debate, as mudanças impostas às três universidades públicas paulistas, via decretos do governador do estado, ferindo a autonomia universitária. Mais uma vez veio à baila quais e como devem ser as relações da universidade com os demais setores da sociedade. Vamos aqui relembrar alguns fatos e buscar as relações entre a excelência que já se conseguiu no ensino e na pesquisa das universidades públicas paulistas e a tão sonhada qualidade na educação básica.
USP, UNICAMP e UNESP são
responsáveis por mais de 50% da produção em pesquisa no
Brasil; a UNICAMP, por seu turno, é a maior detentora de
patentes do país na atualidade. As vagas de ensino de
graduação e de pós-graduação cresceram expressivamente
nos últimos vinte anos, muito embora tenha se reduzido
sensivelmente o corpo docente e o corpo de funcionários.
Por todos os lados que se olhe, encontramos a
participação das três universidades: educação, medicina
e assistência hospitalar, biotecnologia, engenharia
genética, agricultura, saneamento básico, controle e
preservação do ambiente, construção civil,
biocombustível, movimentos sociais e populares,
preservação do patrimônio histórico, inovações em
fármacos, melhoria da saúde, assistência social, artes e
música, engenharia e automação, enfim, uma lista
interminável de áreas de conhecimento e de pesquisa, de
participação direta em todos os campos e segmentos
sociais. A Secretaria de Ensino Superior, de acordo com o decreto estadual 51.461, tem como uma de suas atribuições a "proposição de políticas e diretrizes para o ensino superior, em todos os seus níveis”; para o Secretário da pasta é previsto “decidir sobre as proposições encaminhadas pelos dirigentes dos órgãos subordinados e das entidades vinculadas à Secretaria”, entre outras competências. Ou seja, as políticas e diretrizes universitárias correm o risco de não serem mais discutidas no âmbito das universidades, mas ainda pior, não terão como última instância decisória os respectivos Conselhos Universitários, e sim o crivo de decisão do novo Secretário. Uma das justificativas que o novo Secretário do Ensino Superior apresentou para as mudanças foi a necessidade de se dar organicidade às cerca de 500 instituições de ensino superior do estado, a quase totalidade instituições privadas. Será que ele se esqueceu que todas as instituições privadas de ensino superior, entre universidades, faculdades, institutos ou centros universitários, subordinam-se diretamente ao Ministério da Educação (MEC), em especial para o credenciamento, reconhecimento e avaliação de seus cursos, enquanto USP, UNICAMP e UNESP respondem ao Conselho Estadual de Educação e à secretaria estadual a que estão vinculadas? E mais: por que os decretos deixaram de fora da Secretaria de Ensino Superior as Faculdades de Tecnologias - FATECs, integrantes do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza e até então vinculadas ao Conselho Universitário da UNESP? Outra medida incompreensível é a mudança de denominação da então Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico para Secretaria de Desenvolvimento. Será que ciência e tecnologia deixaram de ser prioritárias na atual gestão estadual? O governo deixou de reconhecer a intrínseca e indissociável relação entre ciência, tecnologia e desenvolvimento? Em todo o mundo, ciência e tecnologia são fatores primordiais – costuma-se dizer “política de estado” – para o desenvolvimento social, econômico, artístico e cultural. Dar elevada prioridade e ampla visibilidade a esses dois fatores são deveres de qualquer governo. Mas vamos comentar um dos caminhos que o secretário sugere para a melhoria da educação básica, o único tornado público até o momento. Ele sugere que sejam estimulados “os cursinhos, os colégios de aplicação e os estágios”. Com respeito à expansão dos chamados “cursinhos” preparatórios aos exames vestibulares, o que se pode dizer é que a receita do Secretário é péssima. Os cursinhos são uma excrescência do sistema educacional escolar. Existem por interesses empresariais e privados que perceberam, na péssima qualidade da educação escolar, uma oportunidade de negócio e de grande lucratividade. Não é possível que alguém, em poucos meses de cursinho, aprenda o que deveria ter aprendido em 11 ou 12 anos de escolaridade obrigatória. Se o estudante chegar bem formado ao cursinho, fará uma revisão do que já aprendeu, e ainda será treinado para responder determinados padrões de questões dos vestibulares. Se chegar com uma formação deficitária, pouco aproveitará. Assim, se tivermos uma educação pública básica de qualidade, os cursinhos passarão a ser completamente desnecessários. A solução, portanto, não está na criação de cursinhos, mas sim na melhoria da qualidade das escolas do ensino básico. Imaginemos positivamente que a referência tenha sido aos colégios de aplicação não neste velho e superado sentido, mas no de buscar difundir por todo o estado as boas experiências das escolas públicas de excelência que tivemos no passado e continuamos a ter na atualidade. Citemos, como exemplos, os dois colégios técnicos da UNICAMP, o colégio de aplicação da USP, as muitas dezenas de escolas técnicas do Centro Paula Souza, escolas e colégios cuja qualidade do ensino é atestada, entre outros indicadores, pelos ótimos resultados alcançados por seus alunos no ENEM. Também podem ser lembradas as escolas experimentais e vocacionais de um passado remoto, ou as escolas-padrão mais recentes. Considerando que todo esse suposto projeto da Secretaria de Ensino Superior faça parte do confuso plano do novo governo estadual, pergunto: o governo atual tem mesmo a intenção de transformar as cerca de 5800 escolas públicas estaduais em escolas de elevada qualidade? Podemos esperar que a infraestrutura escolar seja ampliada e equipada, que laboratórios e salas-ambiente bem aparelhados passem a ser realidade em todas as escolas, que bibliotecas passem a funcionar efetivamente (na grande maioria das escolas elas ficam fechadas, quando existem), que espaços de lazer e de eventos artísticos e culturais sejam estabelecidos e animem atividades diversificadas do currículo? Podemos supor que os professores e especialistas de ensino passem a ter uma carreira digna, com salários decentes e progressão gradual, que os professores passem a ter 50% de sua jornada de trabalho em sala de aula e 50% dela destinados à preparação de aulas, reuniões coletivas de trabalho pedagógico, interface com a comunidade, participação em projetos e programas de estudo e pesquisa? As escolas – todas elas – passarão a “tempo integral”, ampliando a permanência da criança e do adolescente no ambiente escolar? O segundo período do “tempo integral” não será um período em que os alunos ficarão abandonados na escola, sem qualquer orientação, fazendo o que bem entenderem desde que não incomodem os que estão em sala de aula? Podemos acreditar que haverá tempos para estudos regulares, para recuperação de aprendizagem, para estudos e trabalhos coletivos por parte dos alunos, até mesmo com desenvolvimento de projetos, tudo orientado por professores devidamente preparados, e não por qualquer outro tipo de profissional, muitas vezes alheio às especificidades da educação formal de crianças e adolescentes?
Se tivermos forte investimento na
educação básica, fiquem tranqüilos, senhores secretários
e senhor governador, a comunidade escolar de cada uma
das 5800 escolas estaduais sabe muito bem o que fazer.
Dispensa a tutoria das universidades sobre o trabalho de
professores e gestores, não precisa que lhes digam como
empreender um bom ensino. Mas tenham certeza de que as
três universidades públicas paulistas estarão dispostas
a colaborar intensamente com o processo, a exemplo do
que já fazem por meio de programas especiais de formação
de profissionais da educação, em nível de graduação, de
pós-graduação e de extensão universitária, e de
programas de pesquisa visando à formação em serviço e à
melhoria dos processos educativos e de gestão escolar. Todavia, se as mudanças forem para algumas poucas escolas, para uma restrita parcela dos professores, por um ou dois anos, ou até chegarem as próximas eleições, por favor, não percam o seu tempo e o nosso também. Lembrem-se dos resultados dos exames nacionais e regionais de avaliação da educação básica. De que adiantou colocar quase 100% das crianças e adolescentes no ensino fundamental e médio, sem investimentos na expansão e melhoria da infraestrutura escolar, na melhoria das condições profissionais e de trabalho dos professores e dos especialistas de ensino? Foram alcançados os índices exigidos pelos organismos internacionais como contrapartida aos empréstimos que fazem, mas a grande maioria da população escolar continua analfabeta ou mal-formada. A massificação do ensino escolar e o sistema de progressão continuada (atualmente progressão automática e sem o apoio de programas adequados de recuperação e acompanhamento dos alunos com defasagem), apenas com a preocupação de se alcançar índices quantitativos, independentemente da qualidade do ensino efetivamente realizada, gera dados educacionais falaciosos: temos elevados índices de permanência escolar, baixas taxas de evasão e repetência, e, ao mesmo tempo, indicadores sofríveis da qualidade de formação das crianças e dos adolescentes. Esta é uma realidade já instalada no ensino fundamental e médio e que se pretende estender para o ensino superior. Tomemos o exemplo do PROUNI. Esse programa traz em seu bojo uma proposta de acesso ao ensino superior desejável por grande parcela da população que não consegue freqüentar uma universidade pública ou que não tem recursos para custear uma boa instituição privada. Mas que tipo de formação o PROUNI tem proporcionado? Provavelmente, daqui a alguns anos teremos dados de mais essa lamentável decisão: um grande contingente de profissionais graduados, com o “canudo” na mão, todavia sem qualquer conhecimento sólido decorrente dessa formação, sem qualquer ganho cognitivo pela passagem pelo nível superior.
O PROUNI tem servido para
financiar instituições privadas, muitas delas
decadentes, de baixa qualidade e com vagas ociosas. Eis
uma contradição inexplicável: o PROUNI é um programa do
governo federal que financia a participação de
estudantes em muitos cursos considerados ruins nos
exames de avaliação promovidos pelo próprio governo
federal. Por que não direcionar o PROUNI apenas para
cursos e instituições bem avaliados? Ou melhor, por que
não financiar a expansão das universidades federais e
estaduais, ao invés de financiar instituições privadas?
Com financiamento adequado às instituições públicas
poderiam ser alcançados os mesmos indicadores
quantitativos que se alcança hoje como o programa, porém
com um ganho de qualidade na formação dos estudantes
consideravelmente maior. O custo-ano de um aluno de
graduação em uma universidade pública não é muito
diferente do custo em uma instituição privada de
qualidade. Todavia ter qualidade custa mais (não muito
mais) do que ter simplesmente indicadores numéricos de
que todos os adolescentes ou adultos têm possibilidade
de cursar o ensino superior, qualquer que seja a
qualidade da instituição e a qualidade da formação.
No Estado de São Paulo, a criação
da Secretaria de Ensino Superior, a tentativa de
desvirtuar os fins da universidade e de restringir sua
autonomia, o possível desmantelamento do sistema
estadual de educação tecnológica são indicativos claros
de que poderemos rapidamente ser conduzidos igualmente a
uma situação de massificação do ensino superior público
sem a conseqüente manutenção da qualidade.
*Agradeço as sugestões e revisão do texto feitas por Alcir Pécora e Cristiane Maria Megid. |