26 de fevereiro de 2007

UMA PEÇA JURÍDICA PERFEITA – E QUE PEÇA!
Sergio Silva
Ex-Presidente da Adunicamp
Carnaval 2007


Com apenas uma ressalva, concordo com a frase intercalada no último parágrafo da declaração do dia 6 de fevereiro de 2007 da diretoria da Adunicamp. O famigerado decreto do primeiro dia do novo (Deus me perdoe) governo é, não apenas aparentemente, é uma peça jurídica perfeita, do ponto de vista do Direito atual, ou seja, do Estado de Exceção Permanente.

O famigerado cria a Secretaria do Ensino Superior, à qual subordina um meta-estrupiado CRUESP (Conselho de Reitores do Estado de Exceção Permanente), não mais formado pelos reitores, nem mesmo por uma maioria de reitores, mas por um bando de secretários do (Deus me perdoe) governo.

Para agravar sua composição egípcia, o Conselho de Exceção conta agora com o poder de fazer propostas sobre as questões centrais (ensino e pesquisa) das universidades. Desta forma, o famigerado acaba - sem dizer que acaba - com a autonomia universitária. Neste sentido, o famigerado é peça jurídica exemplar do Estado de Exceção Permanente.

Entre parêntesis. O conceito de Estado de Exceção Permanente tornou-se um fundamento da Filosofia Jurídica pelo menos após as publicações de Giorgio Agamben, notadamente os livros de 2004: Homo Sacer (UFMG) e Estado de Exceção (Boitempo). Para os não muito familiarizados com as desgraças correntes, noto que Filosofia Jurídica não é Filosofia do Direito, eventualmente objeto de análise da primeira (a Jurídica). Se preferirem, adotem o genérico: Filosofia Política.

Desde o nazismo, o Estado de Direito e as idéias liberais e democráticas aceleraram seu processo de autodestruição; processo completado já há algum tempo. Tal metamorfose foi tão ampla e profundamente ancorada na sociedade que se tornou irreversível. Lamento, mas não existe possibili*dade de volta ao Estado de Direito ou à política liberal; à democracia, nem pensar. São coisas do passado.

Antes, o Estado de Exceção fazia parte do Estado de Direito como estado transitório, com seu tempo contado. A mudança consistiu na transformação não anunciada do Estado de Exceção em Estado Permanente, que integra e, ao mesmo tempo, destrói o Estado de Direito, que permanece como figura puramente formal.

O Brasil, não tem furacões, nem vulcões, mas é um belo exemplo do Estado de Exceção Permanente. Para evitar um tratado teórico, lembro que a Constituição brasileira reza que só é possível alterá-la de forma significativa por uma Assembléia Constituinte ou com poderes constituintes. A Constituição em vigor proíbe a adoção de Reforma Constitucional por assembléia que não tenha poderes constituintes. Por favor, não chore.

Solução da Exceção Permanente: a Constituição é alterada significativa e amplamente através de pacotes de Emendas Constitucionais (alterações pontuais permitidas). A Ordem dos Advogados e outras associações preocupadas com o Estado de Direito, denunciaram muitas vezes, desde o primeiro governo civil: "não vivemos em um Estado de Direito". A Adunicamp publicou uma revista sobre o tema. Na capa: a Constituição rasgada. Ninguém chorou.

Como se sabe, a República do Brasil - desculpem-me a expressão esganadora - é governada através de Medidas Provisórias, as populares MPs. Será que este nome foi escolhido para nos lembrar - morto e enterrado sem cerimônia - caráter provisório do Estado de Exceção? Humor negro.

Como se sabe, as dezenas, centenas, milhares de Medidas Provisórias podem ser aprovadas ou não pelo Legislativo. Mas... Alguém já viu alguma MP importante não aprovada pelo Legislativo? Desculpe insistir, mas esta é a característica fundamental do Estado de Exceção Permanente; e assim a exceção torna-se permanente.

Por falar nisso: alguém pode me passar o nome de um reitor que tenha defendido - mesmo sem sucesso - a autonomia universitária? A autonomia universitária nunca existiu, mas o decreto, sem dizer, acaba com a autonomia que nunca existiu. Com essa, o governador de São Paulo ganhará o Oscar da Exceção Permanente.

Do ponto de vista jurídico, várias passagens do famigerado são o que tradicionalmente se chamava de aberrações completas. A presidência do Conselho de Reitores por um não reitor é uma delas. Talvez, pelo seu caráter mais escandaloso e certamente por sua importância menor, esta aberração completa já foi "corrigida".

Outra aberração igualmente escandalosa não foi - ou ainda não foi - "corrigida": no conselho de reitores, os reitores não só dividem o conselho com não reitores, como não são maioria face aos não reitores. Também sobre este ponto aplicar-se-ia a avaliação de "importância menor". Ou alguém ainda ousa duvidar da fidelidade incondicional dos reitores ao governador? Mesmo depois do caso Banespa - Caixa Deles?

Talvez devamos nos acostumar com o charme indiscreto da truculência, inclusive a gratuita. Podemos sonhar com os vampiros da Família Adams, mas, evidentemente, eles não fazem parte do drama que examinamos aqui.

Do ponto de vista do Estado de Direito, um conselho de uma secretaria de governo destinado a "orientar" as universidades, com "propostas" concretas, não pode ser considerado compatível com a autonomia universitária. De nada adiantam promessas (genéricas) de respeito à pobrezinha; a que morreu sem nunca ter vivido.

Aliás, o caráter dessas medidas "gerais", "orientadoras" pode ser julgado a partir das duas vezes em que o famigerado afirma que respeitará a autonomia universitária e as característricas particulares de cada universidade. Pelas barbas de Machado, que medidas serão adotadas que não desrespeitarão a autonomia da universidade e, ao mesmo tempo, serão tão específicas a ponto de se preocuparem com as "características particulares" de cada universidade?

Pelos bigodes de Pessoa, e para encurtar (só um pouco) a nossa conversa, vamos aos objetivos do CRUESP, que o famigerado define em seu artigo 43:

I - fortalecer a integração entre as Universidades;
II - propor possíveis formas de ação conjunta;
III - conjugar esforços com vista ao desenvolvimento das Universidades;
IV - assessorar o Governador em assuntos de ensino superior;
V - analisar e propor soluções para as questões relacionadas com ensino e pesquisa nas Universidades Estaduais.

Extamente na linha jurídica (desculpem-me o uso amplo do termo) do Estado de Exceção Permanente. O Conselho de Reitores de Exceção Permanente não determinará nada, apenas fará propostas. As universidades poderão ou não aceitar estas propostas. Isso não é lindo? Lembram das MPs? Se o Congresso desejasse poderia ter recusado o Cruzado, o Irreal. Não poderia? Os conselhos universitários poderão recusar as "propostas" do Conselho de Reitores de Exceção Permanente. Não poderão?

No cumprimento de seus objetivos, o Conselho de Exceção poderá propôr determinadas cargas horárias de aulas, determinados horários administrativos, determinadas formas de avaliação discente, determinadas regras para contratação de pessoal, concessão de bolsas. Naturalmente, cada universidade, seus reitores, seus conselhos universitários poderão rejeitar estas propostas. Não poderão?

As atribuições da nova Secretaria do Ensino Superior e, em especial do CRUESP, são incompatíveis com o Estado de Direito. Do ponto de vista do Estado de Direito, o famigerado constitui uma peça jurídica totalmente imperfeita, ilegal e inconstitucional.

É verdade que o Estado de Direito morreu, mas o Estado de Exceção Permanente é um desenvolvimento notável, muito especial, juridicamente inovador dos Estados totalitários do século passado. Não se apresenta como negação do Estado de Direito, mas como Estado de Direito moderno, super racional, concorrencial, globalizado.

Donde, podemos reivindicar o morto, até mesmo na Justiça. Exigir respeito ao finado! Defender, na Justiça, que um decreto não pode mudar uma lei (as que estabelecem os estatutos das universidades do Estado de São Paulo), nem a Constituição (que estabelece esta hierarquia jurídica e também a autonomia das universidades públicas).

Do ponto de vista do Estado de Direito, o novo governo só poderia continuar desrespeitando a autonomia universitária da forma como faziam seus antecessores. Poderia usar as universidades públicas para interesses mesquinhos, para o serviço da Microsoft, da Monsanto, do Exército, mas deveria fazê-lo com a colaboração (sempre generosa) dos magníficos reitores e de seus egrégios conselhos universitários.

Não é nenhuma maravilha, mas... Para isso, será preciso que a Adunicamp tome uma iniciativa, consiga o apoio de um jurista que entre nessas de Estado de Direito e espere que um juiz, apesar de toda a pressão que pesa sobre a Justiça, resolva também defender o Estado Direito. Enfim, um milagre!

Mas a gente pode tentar. Para contar para os nossos netos.