À comunidade da UNESP
Considerações
sobre o Papel de uma Universidade Pública no Desenvolvimento Local e Regional
– Uma reflexão motivada pela decisão do CEPE de não oferecer o vestibular
em 4 Unidades Diferenciadas da Unesp (Registro, Ourinhos, Dracena e Rosana).
José Carlos Souza Trindade – Professor Titular de Urologia da Faculdade de Medicina de Botucatu e Reitor da UNESP 2001-2004.
INTRODUÇÃO
Pensar na Universidade Pública e suas relações com o Desenvolvimento Local e Regional de maneira ampla deve ter, a nosso juízo, um ponto de partida: na sociedade brasileira, essa questão deve ser vista a partir do vínculo entre a Universidade e os processos de democratização da nossa sociedade. Em outras palavras, a Universidade deve realizar suas atividades voltadas para a produção do conhecimento – isso é fundamental, porque se trata de sua própria essência – mas deve também pensar e orientar essas atividades no sentido de avançar na promoção de maior integração com a comunidade que a sustenta, contribuindo para a concretização de uma sociedade mais justa e de efetivo exercício de direitos para todos.
A Universidade brasileira foi criada e se desenvolveu como parte das políticas públicas gestadas pelo Estado. Desde meados do século XX, o seu crescimento foi notável em termos sociais, culturais, científicos e tecnológicos. Por questões históricas, a Universidade Pública representou e representa a possibilidade de ingresso no mundo da modernidade para milhões de jovens e é também o lócus no qual a idéia de uma sociedade do conhecimento se projeta como paradigma de futuro.
A população brasileira e, em especial a do Estado de São Paulo, sempre demonstrou grande apreço para com a Universidade Pública. Para responder a esse sentimento e também às demandas desta sociedade na conjuntura brasileira atual, ávida de ampliação do ensino superior público, desencadeamos e sustentamos, em nossa gestão na UNESP, um processo significativo de expansão de vagas que teve como pedra angular, não apenas a garantia da qualidade na formação de profissionais e pesquisadores, mas a proposição de criação de novos cursos e de novas modalidades de relacionamento entre a Universidade e a sociedade.
RAZÕES
ACADÊMICAS E SOCIAIS DA EXPANSÃO DA UNESP
Nesse sentido foi criado, em conjunto com a Secretaria da Educação, com a USP e com a PUC de São Paulo, o Programa de Educação Continuada de Formação de Professores para o Ensino Fundamental, em que a UNESP conferiu diploma universitário a 3456 professores da Rede Estadual. Em continuidade com essa experiência, desenvolvemos o Projeto “Pedagogia Cidadã”, que já contempla, com curso superior, 5142 professores/alunos da Rede Municipal de 98 cidades do Estado de São Paulo. Além disso, novos cursos e novas unidades universitárias (chamadas até o momento de Unidades Diferenciadas) foram criados entre os anos de 2001 e 2004, acrescentando 1645 novas vagas no vestibular da UNESP.
O programa de expansão de vagas, e em especial o das Unidades Diferenciadas, que obteve forte respaldo financeiro do Senhor Governador do Estado, Dr. Geraldo Alckmin, foi planejado e implementado principalmente em regiões pobres, em parceria com cidades sem Universidade Pública, as quais fizeram também importantes e significativos investimentos em relação aos seus respectivos orçamentos municipais.
Os Projetos Pedagógicos desses cursos incorporaram os fundamentos preconizados na agenda 21 – conferência da ONU realizada no Rio de Janeiro em 1992, estando em consonância com os objetivos e as propostas do desenvolvimento sustentado, que pressupõe o envolvimento de uma região, grupos de regiões e até blocos de nações em um novo estilo de desenvolvimento sócio-econômico, preocupados com a preservação dos recursos naturais e da biodiversidade.
Cada um dos cursos propostos para as Unidades Diferenciadas, além de respeitar a trajetória histórica das regiões onde se instalaram, foi pensado no sentido de auxiliar e estimular o desenvolvimento sócio-econômico dessas cidades e regiões, sem desconsiderar a necessidade de formar profissionais altamente qualificados e preocupados com a existência humana no planeta.
Por essa razão, a implantação de um Curso de Engenharia Industrial Madeireira em Itapeva considerou como referencial as áreas de reflorestamento existentes, além da presença de dezenas de pequenas serrarias em suas redondezas. O objetivo, quanto ao desenvolvimento do município, é claro: gerar conhecimentos científicos e tecnológicos suficientes para induzirem a criação de um pólo tecnológico madeireiro altamente competitivo na região.
Da mesma maneira se pensou o curso de Agronomia em Registro, no vale do Ribeira. Aproveitando a aptidão e a tradição agropecuária, considerando os aspectos geográficos e geológicos da região, a proposta desse curso visou formar profissionais que atuassem conscientemente em um contexto de Mata Atlântica e de cerrados, objetivando a preservação, a sustentabilidade e a valorização da biodiversidade em ecossistemas equatoriais.
Já nos cursos de Engenharia de Controle e Automação (Mecatrônica) e de Engenharia Ambiental, em Sorocaba, a ênfase se deu na necessidade de um permanente monitoramento no campo da inovação tecnológica, para assegurar a competitividade de suas empresas, bem como nas questões ambientais que são previsíveis para qualquer cidade de grande porte. O primeiro curso está fortemente preocupado com a utilização de recursos eletrônicos aplicados a sistemas mecânicos, voltados para a modernização industrial da região. O segundo, envolve-se com a solução ou prevenção de ações impactantes ao meio ambiente, especialmente no que tange à gestão urbana, gestão industrial e gestão agroindustrial.
O curso de Geografia, com ênfase em Climatologia, implantado em Ourinhos, tem como missão enfrentar o tema das mudanças climáticas globais, que hoje é assunto obrigatório nas agendas governamentais, empresariais e científicas, uma vez que trarão conseqüências drásticas na oferta de água, comida e energia a curtíssimo prazo.
A criação do curso de Turismo em Rosana, no Pontal do Paranapanema, é também uma iniciativa pioneira. A proximidade do Pantanal e a presença no município dos lagos formados por duas grandes hidrelétricas, na junção dos rios Paraná e Paranapanema, numa área considerada pela Embratur como prioritária para o desenvolvimento turístico, mostraram a necessidade de se criar novas oportunidades para os jovens daquela região e também formar, para o Brasil, bacharéis em turismo capazes de planejar práticas turísticas em regiões ambientalmente frágeis.
Por fim, a UNESP criou os cursos de Administração de Empresas com Ênfase em Agronegócios, em Tupã, e, Zootecnia, em Dracena. São duas Unidades Diferenciadas que podem e devem ser pensadas em conjunto, por se situarem em bacias hidrográficas privilegiadas, adequadas para a produção e comercialização de produtos agropecuários. Essas características regionais foram decisivas para ressaltar a necessidade da formação de profissionais voltados para o desenvolvimento da produção agropecuária na região.
Essa
breve síntese, sobre o formato desses cursos, mostra que eles possuem
interfaces comuns para permitir o desenvolvimento integrado de Projetos de
Pesquisas de grande porte, e são passíveis de ajustamentos para viabilizar
planos macro-econômicos governamentais visando o desenvolvimento regional.
Por tudo isso o processo de expansão, que marcou a nossa gestão no período 2001-2004, teve como principal propósito a defesa da Universidade Pública e de qualidade, enquanto promotora da cidadania e do bem comum, politicamente plural e aberta às vocações diferenciadas que, a nosso ver, representam os caminhos de uma nova Universidade tão necessária ao desenvolvimento do país.
NUVENS
DO RETROCESSO – O “FACTÓIDE” DA CRISE FINANCEIRA DA UNESP
No entanto, a nova equipe gestora da Reitoria, eleita para o período de 2005 a 2009, que ocupou cargos de confiança em nossa administração e que também apoiou o projeto de criação das Unidades Diferenciadas, agora, alegando discutíveis dificuldades financeiras, colocou em marcha um processo de desestruturação de vários programas arquitetados em nossa gestão e em gestões anteriores, incluindo aí o desmonte das Unidades Diferenciadas da UNESP.
Esta justificativa até poderia ser verdadeira para a Universidade como um todo. Entretanto, considerando que o orçamento da UNESP está fixado por Lei em 2,34% do ICMS do Estado e que os gastos com o pagamento do pessoal ativo e aposentado já comprometiam, pelo menos, nos últimos 8 anos, uma faixa variável de 86 a 90% do orçamento total da instituição, torna-se difícil considerar a aludida crise financeira da UNESP como uma peculiaridade do início da atual gestão.
Este
cenário, pintado com cores excessivamente pessimistas pelos atuais órgãos de
planejamento da UNESP, não se sustenta na realidade econômica que o país vive
no momento atual, principalmente se considerarmos que, nos primeiros três meses
do corrente ano, a transferência financeira da Fazenda do Estado para a UNESP já
superou, em mais de 17 milhões,
comparativamente aos valores recebidos no mesmo período em 2004.
Na verdade, não só a UNESP, mas as três Universidades Públicas de São Paulo, há muitos anos convivem com uma situação crônica de restrição orçamentária, que é anualmente agravada com os encargos crescentes resultantes das novas aposentadorias de seu pessoal docente e técnico administrativo.
Apesar disso, esta situação, administrativamente desconfortável, sempre foi enfrentada por seus Reitores, com serenidade, determinação, criatividade e competência. Mesmo nas épocas de queda de arrecadação do ICMS, seus dirigentes evitaram que suas universidades percorressem trajetórias extremamente desestimulantes de estagnação ou retrocesso científico, cultural ou acadêmico, decorrentes da suspensão de importantes programas, muitos deles com forte impacto social.
De qualquer forma, esta eventual constatação de déficit orçamentário ou financeiro não se aplica, às Unidades Diferenciadas, pois o Programa de Expansão de Vagas já recebeu significativos recursos orçamentários, extra quota, do Governo Estadual e do Congresso Nacional, atingindo nos últimos 3 anos mais de 112,3 milhões de reais.
Deste
total, como dinheiro novo para o ano
de 2005, já está inscrito no Orçamento do Estado um valor extra quota
de 15 milhões de reais, que deverão ser
liberados mensalmente, em duodécimos de 1,25 milhões, os quais até março
já perfaziam uma quantia não desprezível de 3,75 milhões.
Do
Governo Federal, vinculado ao Programa de
Expansão de Vagas para 2005, de um total de 10,45 milhões de reais, a atual gestão já encontrou depositado em contas da UNESP, no
dia 16 de janeiro, 4,055 milhões, que poderiam
ser utilizados imediatamente em projetos da expansão visando o aperfeiçoamento
da mesma.
Restam
ainda serem liberados mais 875 mil reais, que poderão ser imediatamente
depositados em contas bancárias da UNESP, desde
que a atual gestão faça uma prestação de contas ao MEC, demonstrando a
correta utilização dos recursos previamente liberados.
Para
completar os 10,45 milhões, arduamente
conquistados em 2004 por meio de emendas da Bancada Paulista no Congresso
Nacional, estão inscritos no Orçamento da União mais 5,52 milhões de
reais, os quais poderão ser liberados assim que a Reitoria da UNESP encaminhar
ao MEC um plano de utilização desses recursos em Programas de Expansão de
Vagas. Infelizmente, até o momento, essas providências da Administração
Central da UNESP ainda não se concretizaram.
Enquanto
isso, a Equipe Reitoral consome precioso tempo, que poderia ser dedicado à
elaboração urgente desses novos projetos, cumprindo um “périplo de amargas
lamentações” nas Congregações da Universidade, queixando-se de falta de
recursos, sem entretanto deixar claro, de forma objetiva, as suas verdadeiras
propostas de gestão.
Por
tudo isso, não há porque falar em crise financeira aguda de nossa Universidade, principalmente utilizando-a como um “factóide” para não
implementar ou aperfeiçoar o arrojado e pioneiro Programa de Expansão de Vagas
da UNESP. Deve ser ressaltado que este programa está em consonância com as
propostas que vieram a seguir, por parte da USP (Zona Leste), da UNICAMP e também
do Ministério da Educação, o qual identifica o aumento de vagas no Ensino
Superior Público como um dos importantes itens da Reforma Universitária em
discussão.
A
DECISÃO DO CEPE – UM GOLPE CONTRA AS UNIDADES DIFERENCIADAS
Em fevereiro de 2005, pasmem, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UNESP – CEPE -, o segundo mais importante órgão colegiado da Instituição, decidiu pelo não oferecimento do vestibular marcado para julho de 2005, em quatro das sete Unidades Diferenciadas (Registro, Ourinhos, Dracena e Rosana). Esta decisão do CEPE contraria a resolução do Conselho Universitário (CO), aprovada por unanimidade em 04 de agosto de 2004, que fixou o vestibular das unidades diferenciadas, anualmente, no calendário do vestibular de inverno da UNESP. Isto constitui um flagrante desrespeito aos Estatutos, ao Regimento Geral e ao Regimento das Sessões do CO da UNESP. É uma decisão anacrônica, na qual um colegiado, hierarquicamente inferior, pretende alterar uma resolução do Órgão Máximo da Universidade, sem atender às disposições regimentais, e em particular às do Capítulo III, Artigos 60 e 61, do Regimento das Sessões do CO.
Simultaneamente, a equipe Reitoral suspendeu ou atrasou a contratação de docentes em Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP), no momento em que se iniciavam as primeiras disciplinas profissionalizantes desses cursos. Além disso, ainda não satisfeitos com essas medidas, nomeou-se uma comissão para estudar a redistribuição dos equipamentos didáticos adquiridos para atender os projetos pedagógicos dessas Unidades, que, se efetivada, resultará em sério comprometimento na qualidade do ensino e da pesquisa das mesmas.
Esse ataque brutal, desfechado simultaneamente, em três frentes, contra as Unidades Diferenciadas da UNESP, com origem no seio da própria Universidade, tem sim o poder de ferir de morte esses novos e promissores cursos, ainda em processo de consolidação.
Os dirigentes ou colegiados de uma Universidade Pública, ao proporem a suspensão do vestibular em 4 Unidades Diferenciadas, além de gerarem intranqüilidade no corpo docente, discente e técnico administrativo, certamente, praticam um crime contra a sociedade ao patrocinarem o fechamento de cursos superiores qualificados, principalmente em regiões desprovidas de instituições congêneres.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
É fundamental que a academia, como um todo, entenda que cada Unidade Diferenciada aspira à Universalidade do saber, porque se sente parte de uma Universidade da qualidade e do perfil da UNESP.
Prova disso são os projetos pedagógicos ou planos de atividades trienais elaborados pelos seus professores e encaminhados à Comissão Permanente de Avaliação (CPA) que, integrados entre si, definem distintas linhas de pesquisas focalizadas no desenvolvimento regional. Há jovens professores nas Unidades Diferenciadas, na sua grande maioria com o título de Doutor, que já se apresentam como autores de livros, detentores de patentes e propositores de projetos nas principais agências de fomento do País.
A dinâmica que se instituiu na criação das Unidades Diferenciadas não está aquém do conjunto da UNESP, em nenhum dos eixos que estruturam a sua vida universitária, isto é, no ensino, na pesquisa e na extensão. Muito ao contrário, a experiência das Unidades Diferenciadas indica, desde já, uma ênfase organizacional – que poderá superar a rigidez compartimentada da atual estrutura departamental, integrando seus docentes de diferentes áreas do conhecimento em projetos de pesquisas comuns.
Podemos assegurar à toda comunidade unespiana que as condições para um ensino vinculado à pesquisa não apenas atendem, mas superam as expectativas contidas nas propostas iniciais desses novos cursos, a ponto dessas unidades sugerirem uma nova modalidade de organização capaz de renovar a Universidade.
A
semente foi plantada. A qualidade dos frutos vindouros dependerá, agora, da
colaboração de todos, principalmente dos colegiados superiores da
Universidade. E essa qualidade certamente não será mantida se os Órgãos da
Administração da UNESP continuarem criando dificuldades artificiais para as
Unidades Diferenciadas.
É com um sentimento de tristeza, angústia e perplexidade que se constata que o CEPE, um importante Colegiado da UNESP e também a Equipe Dirigente da Universidade, façam uma clara opção pela rota do retrocesso acadêmico e insistam em percorrer uma trajetória cujo sentido aponta para a contramão da história e do progresso acadêmico.
Obs:
o texto acima foi enviado, por e-mail, pelo Prof. Dr. José Carlos Souza
Trindade, ex-Reitor da Unesp, a comunidade da Unesp, no dia 08/04/05, com
o título "Suspensão do Vestibular das Unidades Diferenciadas"